DO QUE É POSSÍVEL SER DITO E SE FAZER VER



Hellen Keller, filósofa e conferencista, devido a uma doença diagnosticada em sua época como "febre cerebral", ficou cega e surda. Mas, através de um código de linguagem dado pelo tato (usando as mãos sobreposta a mão de outra pessoa), expressou tudo o que imaginou. Certa vez, disse que sentia as ondulações dos pássaros através dos cascos e galhos das árvores de algum parque por onde ela passeava.


Assim, mais uma vez, como todos os meus amigos, tentei incluir-me num sistema para aí peroar a minha vontade. Mas um sistema é uma espécie de danação que nos força à abjuração perpétua; sempre necessário inventar outro e esse esforço é um castigo cruel. Sem cessar, condenado à humilhação de uma nova conversão, tomei uma grande decisão. Para escapar ao horror destas apostasias filosóficas resignei-me orgulhosamente à modéstia: contento-me em sentir, voltei a procurar asilo na impecável simplicidade. Trago un punto de complejidad que me una al espectador: pretendo mostrar que estoy tan extraviado como el.
Num campo de dispositivos múltiplos, amplificadores proliferados, de inúmeros pontos de vista, de difíceis critérios de avaliação, de duvidosas construções mediadas por um sistema vigente, qual mesmo o lugar ou a possibilidade da crítica de arte? Em um mundo onde a verdade já se prova relativa a quem a inventa, será que a própria definição da palavra “crítica” ainda se aproxima do que fazemos quando pensamos (sob ou junto ou sobre) arte, através de um texto, uma conversa, entrevista, uma obra?
Não lemos um texto (obra/dobra) todos da mesma maneira. Toda leitura é uma má interpretação? Somos diversos, somos diálogos, estamos em constante conversação e assim os pensamentos, os devaneios, as sensações, compõem-nos polifonia. Sem dúvida, saberes em dúvida, e por isso mesmo passíveis de reinvenção, de resignificação.
A palavra Crítica vem do grego KRITIKOS, “capacitado para fazer julgamentos”, de KRINEIN, “separar, decidir, julgar”, relacionado a KRISIS, “julgamento, seleção”, do Indo-Europeu KREI-, “peneirar, discriminar, distinguir”.
Entretanto, já disseram poetas que as palavras gestam em si parábolas. Se buscarmos a origem em português, a palavra “palavra” vem do grego “parábola”: toda palavra é parábola. “Parábola”, no grego, quer dizer “comparação, analogia com uso de linguagem figurada”; “desvio do caminho”. A palavra com essa abertura em toda sua extensão de poder ser comentada, sempre, por outra palavra, desvia os caminhos.
Assim, logo, de Crítica a Críptica, (do latim Crypticus, “subterrâneo, que vive em cavernas, pertencente ou relativo a cripta, secreto, oculto, escondido, enigmático, misterioso, obscuro") trazemos a ver a obscuridade relativa ao julgamento, o sentido de não encontrar a certeza do olhar, mas sim, a dúvida do enigmático. Se deparar com a imensidão na parcela do olhar, sem nos perdermos em um mar de ambiguidades.
Se críptico, o homem de suposição não supõe porque é perito, mas porque vê, porque sente, porque quer fazer ver o que sente. O fazer ver deste críptico/artista crítico, talvez não se limite a suposição do homem de negócios, e nem à repetição da opinião de uma maioria. Além do sentir, e do ver, há também o processo externalizador da fala ou da escrita, do fazimento, que concebe ao críptico (no mundo das verdades relativas, das verdades inventadas mesmo que arraigadas aos seus círculos de sentidos/ responsabilidades) um papel de criação. Pelo POIEN quer o fazimento, a atuação, mas consciente de sua atividade transitiva sobre as coisas.
A criação textual na arte demanda tantas experiências de mundo quanto as criações artísticas. Não se trata de, após tantas experienciações, emitir um juízo final, como quem sentencia um exame minucioso. A própria ferramenta/tecnologia utilizada, a palavra, não comportaria essa determinação (a palavra passa da palavra ao passar pela palavra). Assim como a arte, um texto de/da arte precisa definir o seu lugar (ou pelo menos, expor os lugares), o seu sentido (e os sentidos) de estar no mundo. Esse árduo fazimento de agregados sensíveis é para o artista a construção de sua própria poética, e para o críptico é a decisão do lugar de observação escolhido ou existido, dele/nele. E dispor um lugar de observação é também um acontecimento.
Encontrar documentos relacionados a determinados projetos de arte é tê-los integrante de um acontecimento, daquilo que é visível como trabalho de arte. Tais registros funcionam como uma alavanca, um trampolim, uma mola para a imaginação: impulsionar a experiência, fazer viver algo que ocorrera em outro momento e de outra forma. A produção que advém do artista se conjuga com a produção dos sistemas de visibilidade, tanto nos pequenos quanto nos circuitos de grande porte. Os materiais decorrentes de obras em exibição, ou em processo, apontam para um projeto poético visível e experienciável. Muito da experiência possível, entretanto, se perde na transcrição do trabalho, seja pelos autores serem diferentes, por não ser o objetivo da transcrição carregar uma poética, ou pelo distanciamento da experiência geratriz. As perdas permanecem evidentes. Pelas evidências de perda, no entanto, desponta um caminho a ser percorrido, aquele não recuperável, que se constitui como sobra indecifrável das vivências, mas experienciável e aberto à invenção.
É a conversa (conversa no sentido que essa palavra ganha na reflexão de Deleuze - onde não importa em si o argumento contra ou a favor do argumento do outro, o que seria uma discussão, mas sim, um diálogo, um diálogo entre o crítico e a obra, o que o olho vê e o que a obra quer lhe dar, fazer ver), a conversa que em nós ritornela, a vontade de devaneios, de suposições, tecer de forma livre a arte como atualidade do corpo, cotidianamente vivendo. Afinal, não há nada mais moderno que querer defender um ponto de vista sobre a arte. Será que deveríamos tentar fazê-lo em um tempo que se quer pós-moderno? Aliás, há espaço para a arte, assim mesmo - no singular -, na panacéia em que a produção contemporânea se transformou? Qual é a contemporaneidade da arte? Os questionamentos e a falta de certeza quanto às respostas alavancadas efetivam as manifestações artísticas de hoje?
Assim, ao nosso dispor muitas palavras, sobre tudo, sobre o mundo. E quando palavras me faltam, o chão fica mudo, e assim diz. Imagino o que não vejo, e o que vejo demais. O chão suspenso, a terra flutuante, extensas distâncias. Mundos de perceptos e afetos. Dados a girar em velocidade excessiva de poluição. De destratos. Mundo morto de sentir, morto de nariz de olho de boca de ouvir do peso do pé quando o pontapé de todos os dias deixam machucados e mortos. Mundo fetiche, de ilusão de felicidade qual consumo, liberdade confundida com valores e altos, que impõem medo às portas e cansaço aos corpos. Olhar é uma arte para o início de uma libertação. A liberdade é trazida pelo campo criado da poética, pela construção de um espaço para o discurso críptico.
É o mundo percebido no tato. A pele como membrana sensível dos momentos diferentes, tornando os diferentes comuns sem a forçosa dialética. Muito atrai o olhar. Como íma, conectado com força, spin de afetos, tal em campos magnéticos, as situações inteiras vividas de corpo. Vivemos em relações, do acordar ao acordar novamente, abrimos os olhos e aí estamos. Dados a sentir e pensar. Ver e ler, relacionar. Quadros, plantas, pessoas, amigos, o ar, velocidades, carros, cores do céu, um peixinho no aquário, nossa respiração, nossa vida em cenas e modos, rodeamos e somos nosso olhar em relações. Modo de ver e ler o mundo sem saber quando um acaba ou quando outro começa. Um misto em si mesmando em nós, todos os dias. Acasos.
Na verdade não tem mais sentido dizer que isto ou aquilo é arte. A crítica, em última análise, é uma forma de apropriação, e é também uma forma de arte. O críptico co-cria a obra de arte, compartilha com o artista de sua autoria ao apropriar-se desta como matéria de reflexão do mundo. É preciso criar formas mais antropoêmicas de se colocar criticamente. Esperneamos muito pouco. A crítica (assim como textos, opiniões, ideias, poéticas, etc.) não nasce pronta, precisamos pôr à prova nossa visão de mundo e nos confrontarmos não só com o outro, mas com nós mesmos.
Afinal, quem te ensinou que arte é legal? Que arte te faz ter ideias? Que arte desperta uma porção de sensações? Que é conhecimento? A arte é, sobre tudo, um sei lá o quê. Sem que minha língua pareça uma navalha, o que vou dizer da palavra, outra forma que criaram para entrarmos em diálogo? Precisamos, urgentemente, nos entregar à essência e ao potencial criador liberto de dogmas, técnicas e afins. Não se pode chegar ao outro lado do rio sem antes navegar sobre ele (...) assim, o destino final torna-se apenas um norte que conduz a expedição.
Para G. Deleuze e F. Guattari a concatenação de situações cria o gesto artístico, o desejo ou o gesto esquizofrênico. A criação passa, portanto, pela multiplicidade de elementos que estão em ação e como eles se relacionam e se chocam. São tais concatenações que dão à presença artística algum sentido perceptível, ainda que de estranhamento, o que torna possível o acesso aos trabalhos, aos conjuntos de ações-pensamentos heterogêneos que os constituem. As relações se fazem por meio de deslocamentos e não de relações lógicas, pois tanto a partir do conceito de diferença, de Derrida, como de Atlas, de Didi-Huberman, arte não se faz de lógica e analogias, mas de dobra e heterotopia (conceito de Michel Foucault utilizado por Didi-Huberman em Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?, 2010). A dobra deriva, segundo Derrida, do ponto de inflexão, o qual Paul Klee transformou em figuras. O ponto de inflexão é o ponto-dobra, "ponto não dimensional, ponto entre as dimensões", que é inseparável de uma variação infinita ou de uma curvatura infinitamente variável, fazendo de todo intervalo um lugar de uma nova dobra. "É aí que se vai de dobra em dobra" (Derrida, A dobra: Leibniz e o barroco, 2007, p. 33).
Neste sentido, arrisco-me a pensar no espaço do gesto artístico (que configura também o espaço criado pelo crítico, seu discurso) a partir das mesas do bilderatlas Mnemosyne, de Aby Warburg, resgatadas para a mostra e o texto curatorial de Didi-Huberman, Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?. Mesas que constroem releituras intermináveis do mundo e da história da arte por uma arqueologia das imagens (e por que não dos gestos e discursos?), imagens anacrônicas, de forma que convivem, numa mesma mesa, imagens da antiguidade e imagens contemporâneas, com uma operação de montagem baseada na heterotopia, ou seja, na diferença, na variação, na totalidade da diferença sabiamente caótica, sem chegar em uma síntese. Como diria Jorge Luis Borges de Lewis Carroll, "el rigor secreto de las cosas caoticamente reunidas", ou como diz o próprio Didi-Huberman: "la cartografía extraña de nuestras experiencias inconmensurables" (2010, p. 56).
A crítica enquanto criação, por sua vez, dobra e desdobra-se em outras tantas multiplicidades. Ideia que nos aproxima da membrana sensível de limitação entre a crítica e a própria arte (as membranas talvez de tão finas dêem lados para algo comum). Mas por hora, optemos por aceitar a crítica em seu primeiro momento, o livre pensamento a partir da arte que se vê, a partir do que se faz ver da arte.
O modelo crítico torna-se um não critério, permitindo que a crítica articule ideias diferentes, de sistemas diferentes, ou que crie um sistema específico para análise das obras sem definí-lo como exclusivo. É a troca de uma parede por uma membrana permeável entre a verdade e a especulação de seu significado. Pensando na dimensão de ato criativo que o processo de conhecer e dar significados ao mundo das coisas possui, a arte e a críptica possibilitam que pela lógica do sensível, do poético, o ser humano também (re)conheça e (re)interprete a si e o mundo, o que amplifica mais camadas e possibilidades de apreensão da realidade, bem como de expressões e significações.
O processo de montagem de uma poética demanda a escolha e combinação de diferentes elementos, bem como o reconhecimento e junção desses elementos a partir de um ou vários pontos de vista. Para o crítico este procedimento não é diferente. É preciso que se escolha um ponto de partida, é preciso que se construa um agenciamento específico. E para isso há também a ação de reconhecimento, recorte e combinação de alguns elementos já existentes. Os elementos da críptica são as próprias palavras, as sentenças, os pensamentos já construídos mundo afora.
Ao elaborar um processo de montagem, o artista não pode pretender repetir uma sentença já criada, por mais que possa utilizar-se dela. Ele a traz para si tornando-a outra a partir de si. Da sua poética parte seu lugar de desvio. Diante da montagem, tanto o artista quanto o críptico procuram estabelecer conexões catalisadoras da fundação de um lugar. Outro lugar, articulado pelos desdobramentos de uma origem que lhe dá sentido, aquilo que ele quer fazer ver. Costurar elementos traz consigo a dimensão do risco labiríntico, mas também a potência da multiplicação desviante de uma sentença.
O LAB# tem por procedimento de criação o encontro entre duas ou mais pessoas interessadas em alavancar desdobramentos no outro e em si mesmas. Isso ocorre através da elaboração de discursos cripticos/poéticos nos mais possíveis suportes, materiais ou não. O objetivo é criar aberturas infindas para pensar os devires da crítica. Por isso, a cada edição, constrói-se um espaço de reflexão em arte que se funda artisticamente posicionado num devir poético. Essa edição mantém a materialidade pensada para a criação de circuitos de aparição. Seu único texto foi criado a partir do procedimento de costuras textuais com as produções das #06 edições anteriores. Buscamos conter neste texto, neste trabalho, neste papel transparente contido de desenhos de letras transpostas de luz, que vieram de outros tantos e diversos textos, aquilo que ainda permanece como agenciador de sentidos nele mesmo, aquilo que ainda é possível ser dito e se fazer ver sobre si mesmo. O texto, que é uma montagem de outros textos, poderia começar com "hoje fazemos arte como fazemos guerra".
Texto:
Marcelo Leite
Samuel Dickow
Clarissa Diniz
Fabrícia Leme
Joana Corona
Rafael Budni
Thiago Valdivieso
Debora Santos
Valdecimples
Margit Leisner
Ana Rocha
Ricardo Lanzarini
Frederico Moraes
Arthur do Carmo
Lailana Krinski
Serafina Flores
Charles Baudelaire
Paulo Leminski
Ana Paula Pereira
Lis del Barco*

Montagem:
Arthur do Carmo e Lailana Krinski

*as assinaturas dos autores seguem uma ordem completamente aleatória

curitiba - mai/jul - 2013