De Pessoa em pessoas ou Partilhando a Arte de Ler



Como experiência de Laboratório de Leitura: “De Pessoa em pessoas”, foi realizado por ação de edital público, na cidade de Curitiba, pelo programa municipal Curitiba Lê. Por sua vez Curitiba Lê é a designação dada ao conjunto de ações na área da Literatura – em andamento ou em proposição – diretamente desenvolvidas pela Fundação Cultural de Curitiba ou em parceria com outras Instituições Públicas, Iniciativa Privada ou Organizações Não Governamentais. A intenção é a de envolver efetivamente os moradores da Cidade nessas ações, aumentando qualitativa e quantitativamente os índices de leitura. O principal objetivo é incentivar as pessoas a se tornarem mediadoras de leitura. Partindo do pressuposto de que para ser mediador é preciso ser leitor, o que se faz é investir na formação como leitor dos próprios participantes, além de se propor reflexões sobre a leitura, seu papel na sociedade e na vida das pessoas.
Vinculado ao propósito do Curitiba Lê, o programa “De Pessoa em pessoas” foi uma experiência de leitura compartilhada em roda. Uma prática de rotação sígnica que se deu como acontecimento de encontros entre pessoas que conectaram-se para ler um conjunto da obra do Fernando Pessoa(s) e seus heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares; e um conjunto de textos de reflexões conceituais filosóficas, pragmáticas e educacionais dos autores: Octávio Paz, Richard Rorty; Johan Huizinga; Ferreira Gullar; Rubem Alves; Michèle Petit;  Gilles Deleuze; Jorge Larrosa,  Suzana de Castro; Armando Gens; Maria Antonieta Pereira; Glória Kirinus. Ao ritmo de alguns textos dos autores citados, conversamos sobre questões que surgem quando praticamos a leitura e a conversação; esse é o momento fértil de experiência na e pela linguagem que se transforma a prática de leitura literária e conversação compartilhada em roda. O momento gerador de devaneios que vão são se elaborando em processo de leitura; e, especialmente, como outras práticas de leitura foram sendo geradas ao longo do laboratório, visando a atuação de diferentes iniciativas de rodas em espaços variados da cidade de Curitiba.
O laboratório de leitura teve duração de 20 encontros de 4 horas cada, uma vez a cada semana, durantes os dois semestres deste ano de 2012. Na casa de Leitura Dario Veloso e na casa de leitura Osman Lins, respectivamente.
Tal ação de leitura: De Pessoa em pessoas – vincula-se a minha proposta de tese elaborada através do Programa de Pós Graduação em Psicologia Cognitiva na Universidade Federal de Pernambuco-UFPE - buscou sustentar-se como experiência de leitura e conversação. A reflexão de tese que tenho construído em diálogo com os autores mencionados desdobra implicações educacionais, por considerar que atos de leituras literárias nos aproximam ao diverso dos sentidos, da significação, do pensar, da sensibilidade. Práticas de leituras literárias coletivas como atos de experienciação do diverso da sensibilidade, caminham para além ou aquém de conceber a leitura como atividade que busca o desenvolvimento de habilidades analíticas; ler e praticar leituras literárias, nesse caso, é praticar a escuta sensível ao diverso dos modos de existir e olhar, literariamente, compartilhados.
Sob a proposta de um laboratório de leitura envolvido com a formação do agente multiplicador de leitura literária: nos emaranhamos por situações que exaltaram novidades e, no eixo da roda, girávamos junto da concepção de que existimos em pluralidade. Somos di-versos, estamos em constante conversação, e assim os pensamentos, os devaneios, as sensações, compõem-nos tal polifonias. Temos nas mãos uma variedade de vozes e devaneios, também sobre como apresentar um repertório literário, um autor, um amigo, em uma situação de leitura.
Mas como seres transitórios, provamos em corpo, a mudança. Percebemos no tempo que passa e fica como o conhecimento que dispomos e expomos a certo assunto, autor, obra, sobre nós mesmos, expressa-se em constante (re)construção, inacabado, as vezes até (in)suficiente, ou (des) interessante. Sem dúvida, saberes em dúvidas, e por isso mesmo passíveis de reinvenção, resignificação. Em meio esses contextos, o olhar que busquei partilhar em roda, acompanha meus envolvimentos de pesquisa como leitora e foi aquele do mediador que ocupa o lugar do leitor que encontra-se convivendo por leitura, com o autor, o escritor, poeta, aquele que cria. E sobre essa relação de leitura consegue falar do que já foi com cada texto vivido. O mediador surge aí, como um próximo desconhecido, e experimenta por vezes, a sensação da proximidade de um amigo com aquele que em atos de palavra escrita expõe-se potência.
O texto como um ente vivo durante a leitura vocalizada torna-se um ato de conversação no qual o autor chega- nos aos ouvidos à dizer por nossas vozes aquilo que pensou e que sonhou e edificou com as mãos. O texto como um ente vivo pode virar um amigo no diverso da significação dessa palavra. Amigos. Sentimos-nos bem na companhia deles por atualizamos sonhos, fronteiras. Beira-se limites e compartilha-se risadas. Novos percursos. Às vezes, com os amigos mudamos o mundo sem nos movermos do sofá. O mundo muda na presença do amigo.
Durante minha pesquisa de tese alguns percursos foram sendo viajados. Percursos de reflexão conceitual mais diretamente com os textos e com os livros, esses momentos estenderam-se aos momentos de comungar tal repertório e algumas elaborações com outras pessoas no laboratório De Pessoa em pessoas. E assim, outros percursos de diálogos e produções escritas foram surgindo. Como leitora e pesquisadora me situo entre esses trajetos: entre pessoas, algumas em corpo e falas, outras em corpo- palavras escritas.
Das reflexões partilhadas em grupo, encontra-se a de que a roda de leitura como experiência potente do letramento pode despertar o prazer da leitura/escuta sensível de textos literários. Entes vivos em escrita, pessoas com quem podemos vir a nos relacionar. Tê-los por perto, muitas vezes como amigos. Amigos nos estimulam, amigos de leitura nos instigam como leitores a seguirmos por caminhos que nos levam a refletir nossa própria condição humana. Leituras que podem, fortemente, estimular nossa imaginação criadora e nos tornar ainda mais sensíveis às questões urgentes da sociedade capturante e, sobretudo, segregante, cultural, econômica e socialmente, em que vivemos.

Somente o combate das palavras ainda não pronunciadas contra as palavras já pronunciadas, permite a ruptura do horizonte dado, permite ao sujeito se inventar de outra forma, que o “eu” seja um “outro”. [...] Somente assim pode se escapar, ainda que provisoriamente, da captura social da subjetividade. ( Larrosa, 2003, p. 78).

Os lugares da mediação parecem ter a ver com propor que os sentidos, imagens, palavras novas se movimentam e criam presenças. Todos somos palavras em movimento. Palavras que re-significam e, sob tal concepção, os lugares de mediação como oportunidades de troca de sentidos e não como o lugar da transmissão de um saber. Evitar o sério problema das tão conhecidas submissões interpretativas. Submissões interpretativas podem ocorrer caso o processo de construção de sentidos, de interpretação de cada pessoa participante do grupo, seja subordinado à interpretação que o mediador supõe possuir e transmitir sobre tal obra. Jorge Larrosa (2002) sugere frente essa questão, que o mediador só poderá suspender a famosa "continuidade entre causa e efeito" envolvida na concepção de que ele dispõe. Aprioristicamente, todo o conteúdo que tornará possível os sentidos produzidos na roda de leitura na medida em que abrir e resignificar o que lhe possibilita este lugar de mediação. Faz parte dos lugares de mediação, empenhar-se em construir na temporalidade discursiva da roda de leitura, espaços para as vozes diversas.
Armando Gens (2010), comenta que professores e pesquisadores, que estão envolvidos e atentos aos contextos das escolas brasileiras têm se deparado com a dificuldade de harmonizar a leitura literária e de poesia junto aos propósitos mais norteadores da tradição escolar do ensino de leitura e escrita. Esse tipo de proposta que sustenta o aprendizado em padrões, tipologias e normas, que buscam regularizar os processos de interpretação textual. Por tais motivos, outras atividades que ultrapassem essa dimensão estritamente técnica e instrumental sobre a leitura exigem esforços de pesquisa. Trata-se de um desafio a promoção de encontros de leituras que se preocupem menos com as descrições gramaticais e possibilitem uma experiência na qual o leitor poderá ter liberdade para ler e refletir entre novas palavras as questões urgentes ou tabus ou desconhecidas em novos ritmos e olhares. Sem intenções avaliativas, ou mesmo de análises, De Pessoa em pessoas, desviou-se a olhar o transitar, nós em processo, em atos de leituras, o que aflorou?!
não lemos todos um texto da mesma maneira. Há leituras respeitosas, analíticas, leituras para ouvir as palavras e as frases, leituras para reescrever, imaginar, sonhar, leituras narcisistas em que se procura a si mesmo, leituras mágicas em que seres e sentimentos inesperados se materializam e saltam diante de nossos olhos espantados. Há leituras nas “quais um sentimento de que o texto parece completamente novo, jamais visto anteriormente, é seguido, quase imediatamente, do sentimento de que ele estava sempre ali [grifado no texto], que nós, os leitores, sabíamos que ele estava sempre ali e sempre o conhecíamos como ele era, embora o reconheçamos agora pela primeira vez [...] [...] Não lemos todos os mesmos livros, não temos todos os mesmos desejos. A liberdade, inclusive a liberdade arrancada, conquistada de frente ou sub-repticiamente é indispensável para a experiência apaixonante da leitura.” (MORAIS, 1996, p.177).
Será que o mundo do texto existe quando não há ninguém para dele se apossar, para dele fazer uso, para inscrevê-lo na memória, transformá-lo em experiência? Certa vez, lembrou Paul Ricoeur: que um mundo de textos que não é conquistado, apropriado por um mundo de leitores, este mundo não é, senão, um mundo de textos inertes que não possuem existência verdadeira.
Ler perpassa os sentidos.
Os sentidos são elaborados nas nossas experiências como acontecimento social cultural e cotidiano, como aquilo que nos contingencia e que possibilita-nos (re)construir e comunicar a linguagem como experiência. Não mais a linguagem como representação ou como ideal de algum modelo para espelhar um real que não existe lá fora, além das expectativas que o eu ideal sobre o lá fora gerar. Também linguagem como aquilo que segrega, e que produz cada vez mais e mais desigualdade, e ainda muita dor. A linguagem como práticas dos (des)entendimentos entre as pessoas. Paulo Leminski disse “linguagem é poder”.
As formas de se apropriar das linguagens são contingenciadas historicamente e socialmente desiguais. Assim ações de leitura que construam contextos de leitura(s) em nossas sociedades contemporâneas, implicadas na promoção cultural de contato e convívio com as palavras de diferentes autores poetas fortes de nossa(s) línguas são necessárias.
Sob a perspectiva de que nossas vidas são tecidas em relações com outras pessoas, construídas ao longo da nossa existência. A professora e antropóloga Michèle Petit volta-se a refletir e pesquisar nossa necessidade de estórias que digam de nossas relações. Essas estórias têm vindo à tona em práticas de leituras por agentes mediadores culturais de leitura, e que têm desenvolvido autênticas praticas de liberdade com o texto. Michèle Petit (2009) aborda em seu livro os espaços coletivos de leituras (como, por exemplo, os Clubes de Leitura, as rodas, oficinas e laboratórios de leituras), onde se desenvolvem leituras compartilhadas com o intuito de proporcionar experiências literárias que possam colaborar para alimentar a sensibilidade e a imaginação. Esse trabalho de práticas de leitura que implica oralização de algum repertório literário, observa a autora, depende da escolha dos textos feita pelos leitores ou pelos mediadores. Num trabalho que vai além da promoção da leitura propriamente dita, argumentam a melhora da auto estima do leitor:
os livros são hospitaleiros e nos permitem suportar os exílios de que cada vida é feita, pensá-los, construir nossos lares interiores, inventar um fio condutor para nossas histórias, reescrevê-las dia após dia. E algumas vezes eles nos fazem atravessar oceanos, dão-nos o desejo e a força de descobrir paisagens, rostos nunca vistos, terras onde outra coisa, outros encontros serão talvez possíveis. Abramos então as janelas, abramos os livros” (p. 266).
Em A Arte de Ler ou como resistir à adversidade, obra de Michèle Petit, temos uma recusa à dimensão puramente formativa ou informativa da leitura de literatura – sem ser escrita como recusa. Seu texto – como o título do livro sugere – busca propor uma reflexão de leitura como uma arte, cada um edifica ou desconstrói a sua. Tal como Fernando Pessoa sob o heterônimo de Álvaro de Campos escreveu em “Apontamento para uma estética não aristotélica” em 1924, que esperava que a arte tivesse como finalidade, não a beleza, mas a força. E por isso uma estética não aristotélica. “A arte, para mim, é, como toda atividade, um indício de força, ou energia.” A arte é produzida por entes vivos, e as forças que se manifestam na vida se manifestam na arte. Sendo a força vital dupla: de integração e desintegração. Para Álvaro de Campos, sem a coexistência e o equilíbrio dessas duas forças, não há vida, não há arte. (1)
Textos que foram lidos no laboratório De Pessoa em pessoas e utilizados para a elaboração desse texto.
Armando Gens (2010) Sobre o poema, o poeta e o livro. Em Literatura Infantil e juvenil na prática docente.
Gilles Deleuze (1993). A Literatura e a Vida. Artigo disponível em site de divulgação da obra do autor.
Johan Huizinga (1938/2008) A Função da Forma Poética. Em Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva.
Jorge Larrosa Bondía (2002) Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n 19. (2003).
La experiencia de la lectura. 2. ed. México: Fondo de Cultura Económica.
Richard Rorty. O Fogo da Vida. Artigo disponível em site de divulgação da obra do autor.
Richard Rorty (2010) Uma ética Laica.
Maria Antonieta Pereira (2007) Jogos de linguagem, redes e sentido: leituras literárias.
Ferreira Gullar (2011) Um novo realismo. Texto publicado pela folha de São Paulo.
Ferreira Gullar (1996) A razão poética. Texto publicado pela folha de São Paulo.
Kirinus Glória. (2009). Quando os Poetas Pensam a Educação.
Octávio Paz. (1961). Fernando Pessoa: O desconhecido de si mesmo. São Paulo: Editora Perspectiva.
Michèle Petit. (2009). A arte de ler. São Paulo: Editora 34.
José Morais. (1996). A arte de ler. São Paulo: Editora Unesp.
Suzana de Castro (2009) Sem limites – a imaginação antes da razão.
Poemas selecionados dos livros de Fernando Pessoa:
Cancioneiro. 2011. Porto Alegre: L&PM.
Fernando Pessoa: Quando Fui Outro. 2006. Rio de Janeiro: Objetiva.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. 2009. São Paulo: Martin Claret.
Poesia Completa de Ricardo Reis. 2007. São Paulo: Cia das Letras.
Poesia Completa de Álvaro Campos. 2007. São Paulo: Cia das Letras.
Escritos sobre política, estética e filosofia, entre os anos de 1916 e 1935.
O banqueiro anarquista e outras prosas. Seleção de Massaud Moisés dos escritos sobre ficção, estética, filosofia, política, e cartas de amor.

(1) Heterônimo de Fernando Pessoa: Álvaro de Campos: Apontamentos para uma estética não-aristotélica, Escritos sobre Estetica em 1924.

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