Sentido(s) da (im)permanência




Na verdade não tem mais sentido dizer que isto ou aquilo é arte. (...) A crítica, em última análise, é uma forma de apropriação. O crítico co-cria a obra de arte, compartilha com o artista de sua autoria ao apropriar-se desta como matéria de reflexão do mundo. [1]

   Encontrar documentos relacionados a determinados projetos de arte é tê-los integrante de um acontecimento, daquilo que é visível como trabalho de arte. A produção que advém do artista se conjuga com a produção dos sistemas de visibilidade, tanto nos pequenos quanto nos circuitos de grande porte. “Fui ao arquivo do museu e pedi emprestado todo o material referente àquela mostra (Helter Skelter, Museu de Arte Moderna de Los Angeles, início dos anos 1990) – convites, catálogos – correspondências entre os artistas e a equipe do museu, fotografias das instalações e uma quantidade infinita de resenhas e críticas de revistas e jornais – a fim de apresentá-lo em minha exposição (A Show That Will Show is Not Only a Show).”[2] Sem esses materiais, suportes de visibilidade de um acontecimento, o trabalho de arte e sua exibição estariam fadados ao desaparecimento, ou melhor, ao não aparecimento nos circuitos que ele deseja pertencer.
Os materiais decorrentes de obras em exibição, ou em processo, apontam para um projeto poético visível e experienciável. Muito da experiência possível, entretanto, se perde na transcrição do trabalho, seja pelos autores serem diferentes, por não ser o objetivo da transcrição carregar uma poética, ou pelo distanciamento da experiência geratriz. As perdas permanecem evidentes. Pelas evidências de perda, no entanto, desponta um caminho a ser percorrido, aquele não recuperável, que se constitui como sobra indecifrável das vivências, mas experienciável e aberto à invenção. Qual é a dimensão das ‘sobras’ na constituição da memória? O que permanece na realização de projetos de arte e ainda mais, o que permanece latente nos acontecimentos das obras e artistas que circularam/circulam nos meios de visibilidade da arte?
A montagem de um arquivo opera na dupla dimensão da perda: aquilo que ele deixa escapar quando é feita a seleção para montagem e aquilo da experiência que ele perde na operação de documentar, por exemplo, o todo fotografável[3] O meu trabalho textual se conjuga na dimensão ambígua da palavra “perda” quando referida aos arquivos e aos frutos de sua operação de constituição, referido às propostas circunstanciais, efêmeras, relacionais e imateriais no campo da arte: aquilo da experiência que se perde na captura técnica e aquilo que está perdido diante das diretrizes institucionais.
A função da permanência parece evidente. O sentido é dado pela sua função. Entretanto, o vivido diante da impotência do registro permanece como criatividade latente a ser resgatado, ou re-vivido. Há uma experiência possível de resgate pelo devir criativo dos indivíduos que estão interessados naquilo que se constituiu como arquivo, provocando o encontro de dois caminhos, referentes ao vivido e à experiência contida no arquivo. O vivido não registrado permanece como latência criativa daquele que viveu sem transcrever e a experiência documentada, registrada, importa na medida em que também carrega consigo uma ‘falta’, uma ‘perda’.
Tais registros funcionavam como uma alavanca, um trampolim, uma mola para a imaginação: impulsionar a experiência, fazer viver algo que ocorrera em outro momento e de outra forma. Trata-se de trabalhos que possuem características diferentes das produções artísticas tradicionais. Incorporam, por exemplo, a participação, a relação, a transformação, a impermanência, o acaso, o cotidiano e a temporalidade, e muitas vezes possuem existência material efêmera e circunstancial. (...) A liberdade do vivenciado em outros momentos pode encontrar uma abertura no presente, um olhar no presente sobre ela: alguém produziu intensidade, isso foi possível, por que não aqui? Por que não agora?[4]  
Os conceitos de performance, linguagem efêmera por origem, são conceitos operacionais. Os esboços teóricos se voltam às operações por ela efetuadas, na tentativa de organizar os dados da experiência provocada. A modulação de descontinuidades numa situação é instrumento que permite que ela exista, instrumento visto a partir de sua operação, que a permite acontecer. Tais instrumentos, moduladores do discurso, são instrumentos que são dados pelos contextos de seu acontecimento, surgidos tanto do artista consigo mesmo quanto daquilo com o que o artista se depara, afinal, a performance só pode ser vista se for interferência, ruído e risco; do contrário, nos parece impossível delinear qualquer operação de extensão ou escuta de sua existência efêmera e circunstancial no campo da arte.
As potencialidades de criação situacionais através do que podemos chamar de “corpo modulado”[5] estão ligadas à maior contaminação estrutural do acontecimento das performances. Conjuntos de discurso que tantos os artistas, quanto os críticos (e esse é o ponto!) podem se permitir pelas consecutivas e diferentes estruturas de montagem na comunicação com a audiência, não restringindo os trabalhos pela dualidade da documentação e efemeridade do ato, mas fazendo do documento um espaço outro do discurso performático.
O deslocamento necessário passa a existir não só na presença física do performer em outro corpo, social-político-artístico-material, mas com os indícios de sua autoria numa estrutura onde o deslocamento é provocado. A relação da audiência com a documentação da performance se constitui pelos elementos que desencadearam a performance. A performance para vídeo ou foto se realiza na estrutura videográfica ou fotográfica, e é por essa estrutura que uma forma deslocada vem até nós e/ou aparece. Não é importante uma ontologia a ser pensada, mas seu funcionamento como forma possível. E ela é figura possível, corpo que não se pode ignorar por ser desvio nas trajetórias ordinárias. A performance é originariamente desvio da conduta ordinária. Descontinuidade/acontecimento visível nos cotidianos, nos discursos. Quedas. Do que sou e não posso dizer que sou[6].
Pensar, por exemplo, na gênese das performances é pensar na estrutura da operação que a permitiu. Os documentos passam a integrar a performance como índices dessa estrutura, e não necessariamente índices de realidade. Não restritos a uma ordem material das coisas que se apresentaram, mas a uma ordem simbólica de aparição do mundo presentificada por outro. A aparição da performance é dada pelas condições de presença de um outro. Ele é necessário para que ela exista. Mas a comunicabilidade acontece por uma aparição da performance também em outros suportes[7], pensados aqui como estrutura de uma operação de descontinuidade.
Ao falar da performance, falamos também da prática artística, assim não nos restringimos às especificidades de uma linguagem, mas falamos do artista como criador de acontecimentos. Podemos, então, dizer que todo artista/crítico é um performer, suas elaborações são elaborações nas descontinuidades dos discursos, o trabalho artístico fala por sua forma deslocada, assim como o mundo fala por sua presença/aparição.

Arthur do Carmo, artista-pesquisador, estuda Jornalismo na UFPR.






[1] Frederico Morais. A crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.30 e 36.
[2] Jens Hoffmann. A exposição como trabalho de arte. Concinnitas, ano 5, número 6, julho de 2004, p.25. 
[3] “Na realidade, (...) o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está (previamente) inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos.” FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 31. 
[4] Hélio Fervenza. Registros sobre deslocamentos nos registros da arte. In.: Dispositivos de registro na arte contemporânea. Luiz Cláudio da Costa (org.). Rio de Janeiro: Editota Contra Capa & FAPERJ, 2010, p. 45. Na transcrição, fiz uma mudança no tempo verbal.
[5] Inicialmente, as reflexões se apegavam à ideia de um “corpo orientado”, de um corpo que fala do interior do discurso em que se encontra, provocando assim um sentido outro dentro de uma estrutura ordinária, um corpo que era cisão, orientado a provocar esta ruptura contextual, um corpo que aparece orientado ao deslocamento contextual. Entretanto, quando é considerado que um documento, ele mesmo, carrega o ordinário e a performance, então somos levados a pensar que há uma modulação desejada do discurso. Uma imagem que carrega o voo e a queda, a trajetória ordinária e a sua ruptura, irrupção do desvio nela mesma, carregando em si este corpo modulado, uma imagem-acontecimento que nos faz pensar em performance.
[6] Título da obra de Luana Navarro exposta no MAC/PR, de 8/10/2010 a 13/3/2011 – Possíveis Conexões II.
[7] “[...] a relação crucial não é entre o documento e a performance mas entre o documento e a audiência”. AUSLANDER, Philip. The performativity of performance documentation. In: Performance Art JournalPAJ 84, 2006, p.1-10. Traduzido do original por Talita Gabriela Robles Esquivel, Ana Matilde Pellarin de Hmeljvski, Miguel Etges Rodrigues, Mabel Fricke e Regina Melim em abril de 2008.


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