Em uma sala fechada

Numa província antiga, em que havia muita prosperidade, governada por uma família real de imensa bondade e compreensão, o regente, inspirado por notícias chegadas de outras plagas e pelas visitas que a corte fazia, regularmente, a lugares maiores e mais prósperos ainda, percebeu a necessidade de tomar rumos na direção do mundo que existia além dos seus belíssimos jardins e muros altos.
Por uma fidelidade filosófica imensa aos princípios monárquicos, dedicava muito tempo a ouvir conselhos dos outros regentes, especialmente dos mais idosos e experientes em administrar as coisas públicas do ponto de vista da realeza. Este era o perfil que dava personalidade ao reino no decorrer de muitos e muitos anos.
Ao perceber certas necessidades pelas longas conversas com os sábios do reinado mais ao norte, decidiu o que era preciso fazer!
Convocou, então, alguns especialistas de sua inteira confiança e muitos técnicos em todas as ciências disponíveis na província para tomar a sua decisão.
Ouviu o doutor em ciência médicas, ouviu o doutor em ciências do ensino, ouviu o doutor em ciências esportivas, em ciências sociais, em psicologia, filosofia, engenharia de trânsito... Enfim, ouviu todos os entendidos e cultos da sua corte e, por último, ouviu alguém que ele não dava muita importância e que quase deixou de consultar. Porém, por elegante insistência deste doutor, obrigou-se a oferecer seus ouvidos reais, para incluir, também este, nos relatórios que seus assessores preparavam minuciosamente.
Era o especialista em arte e cultura, conhecido há séculos como o Dr. Curador.
Este, assim que começou a falar com a mansidão dos que estão certos, seduziu o representante divino da comunidade. As propostas do Dr. Curador eram de uma simplicidade comovente, pois traziam soluções economicamente muito baratas, oferecia a fonte dos recursos que a Província não dispunha, apresentava desde cronogramas até os roteiros das apoteóticas festas de abertura e de encerramento de um evento, dignos do nome do rei e do povo da Província.
Assim, em troca de pouca coisa, o Dr.Curador garantiu abrilhantar a História da Família Real daquela corte, o que foi, por fim, o argumento definitivo, pois, para aquele Rei a Família era a coisa mais importante do mundo, como o rei incansavelmente afirmava a todos os seus súditos e aos olhos do povo praticava todos os dias no seu governo.
Para si, o único gesto do Dr. Curador foi fazer uma colombina exigência da criação de um cargo vitalício de Diretor do Ministério do Pensamento Artístico e Cultural da Província, o DMPAC-PR, o que foi atendido prontamente pelo Rei e aprovado pela Câmara dos Nobres.
O Evento, também disse o Curador, elevaria ainda mais a fama da Província Real a todas as províncias estrangeiras. E mais, lembrou que, vinculando o nome da Família Real, estava dentro da lógica administrativa e da visão técnico-administrativa de todos os demais assessores do Governo Provincial.
Certo disso, para o Rei, foi fácil convencer os outros assessores priorizando o evento e, mais fácil ainda foi convencer a sua Câmara dos Nobres, onde contava com maioria esmagadora dos membros, convencidos sempre, com facilidades provindas do seu carisma real. A oposição, era sabido, mesmo não sendo tão nobre, facilitava civilizadamente, via de regra, as aprovações administrativas dos decretos reais.
Reizinho. De tal modo era conhecido o Rei entre seu povo, desde que fora assim chamado pelo seu mais ferrenho oposicionista, um ex-rei que havia perdido a coroa numa disputa pelo poder que dispensou, inclusive, a luta armada e se acomodou, civilizadamente, fazendo seu papel constitucional de opositor, mas que, como todo ex-rei, ainda mantinha certa majestade.
Fora assim: Majestade, como se conhecia este opositor, inventara, como sinal de respeito irônico, o nome de Reizinho para o Rei, que era mesmo uma pessoa de qualidades juvenis, o que, aliás, era muito bom para ambos nos embates políticos e de marketing eleitorais pois, apesar de ser reinado, a Província era um verdadeiro reinado utópico- republicano-democrático.
A História oficial da Província afirmava a possibilidade, única no mundo, de ser uma monarquia republicana democrática, devido, sabia-se, às origens étnicas e eruditas do seu povo, por isso, mui pacífico e ordeiro.
O Dr. Curador e seu Ministério, depois de estudar profundamente a História, as origens, os hábitos reais e etc. da Província, elaborou a proposta que, então, o Reizinho tomava para si e para seus súditos!
A proposta era complexa, porém muito bem elaborada, sem deixar espaço para falhas e surpresas indesejáveis e foi logo posto em prática pelos técnicos de competência assegurada em gestão de qualidade de vida, de progresso industrial, de ordem democrática, de trânsito, de educação, de saúde, de economia, de bens públicos, de ordem pública, de Família e até de cultura!
Foi preciso, para tal empreitada, muita lida com o sistema de arte. Para controlar o entusiasmo de artistas, técnicos, críticos, simpatizantes e especialmente da corte da província que representava o sistema de arte local, algumas medidas tiveram que ser tomadas, inclusive advindas da autoridade imperial, para que nada deixasse de ser devidamente realizado.
O Diretor do Ministério do Pensamento Artístico e Cultural da Província fez inúmeras sugestões sempre que as dificuldades pareciam insuplantáveis, e ganhava muito respeito a cada nova sugestão, o respeito do Rei, da Corte e do povo, inclusive de artistas, críticos de arte e principalmente da imprensa que era sempre ávida de promover as atividades reais.
Com os artistas da Província, como seria de se esperar, houve alguma insatisfação, especialmente quando os decretos reais aprovados pela Câmara dos Nobres deixavam de lado alguns destes, ou propunham contar com o patriotismo provincial de outros que, para o bem da arte e da cultura, foram convidados a oferecer seus préstimos sem remuneração, pois isso foi questão imposta ao Diretor do Ministério do Pensamento  Artístico e Cultural da Província pelos diretores do Ministério da Economia da Província – MEC-PR.
O Dr. Curador, entretanto, trabalhou duro, conseguiu todas as verbas previstas, construiu as obras necessárias, fez todas as viagens às províncias estrangeiras que planejara, contratou todos os técnicos para os trabalhos, visitou grandes empresários da Família provincial, e todos compreenderam os benefícios que a população e eles teriam ao aplicarem seus impostos no evento do Reizinho, através dos novos decretos a favor do financiamento provincial do Sistema de Arte.
Contratempo houve quando um trabalho trazido de outra província, depois de todas as medidas tomadas com outros reinados, não agradou esteticamente as autoridades e assessores provinciais, por deixar explícitas supostas inverdades sobre o comportamento da comunidade que essas autoridades, específicas, representavam. Era algo que questionava opções da Família adotadas na Província.
Mas a solução foi simples e, ao impedir o acesso de todos plebeus ao dito trabalho, a comunidade provinciana, de pronto, compreendeu, sabendo que todos e, é claro, suas famílias estavam sendo protegidos das influências alienígenas e insultuosas e que, assim, protegidos, não receberiam tal funesta influência.
De resto tudo saiu perfeitamente de acordo com os acertos, como tudo o que acontecia na Província...
O Dr. Curador e o Reizinho viveram para sempre e a Província prosseguiu sua missão profética, rica, justa, linda, limpa, ordeira e etc...
Para sempre.

ROGÉRIO GUIRAUD

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