Sentido(s) da (im)permanência II

Na verdade não tem mais sentido dizer que isto ou aquilo é arte. (...) A crítica, em última análise, é uma forma de apropriação. O crítico co-cria a obra de arte, compartilha com o artista de sua autoria ao apropriar-se desta como matéria de reflexão do mundo. [1]

   Encontrar documentos relacionados a determinados projetos de arte é tê-los integrante de um acontecimento, daquilo que é visível como trabalho de arte. A produção que advém do artista se conjuga com a produção dos sistemas de visibilidade, tanto nos pequenos quanto nos circuitos de grande porte. Sem esses materiais, suportes de visibilidade de um acontecimento, o trabalho de arte e sua exibição estariam fadados ao desaparecimento, ou melhor, ao não aparecimento nos circuitos em que ele deseja pertencer.
Os materiais decorrentes de obras em exibição, ou em processo, apontam para um projeto poético visível e experienciável. Muito da experiência possível, entretanto, se perde na transcrição do trabalho, seja pelos autores serem diferentes, por não ser o objetivo da transcrição carregar uma poética, ou pelo distanciamento da experiência geratriz. As perdas permanecem evidentes. Pelas evidências de perda, no entanto, desponta um caminho a ser percorrido, aquele não recuperável, que se constitui como sobra indecifrável das vivências, mas experienciável e aberto à invenção. Qual é a dimensão das ‘sobras’ na constituição da memória? O que permanece na realização de projetos de arte e ainda mais, o que permanece latente nos acontecimentos das obras e artistas que circularam nos meios de visibilidade da arte?
A montagem de um arquivo opera na dupla dimensão da perda: aquilo que ele deixa escapar quando é feita a seleção para montagem e aquilo da experiência que ele perde na operação de documentar, por exemplo, o todo fotografável.[2] O meu trabalho textual se conjuga na dimensão ambígua da palavra “perda” quando referida aos arquivos e aos frutos de sua operação de constituição: aquilo da experiência que se perde na elaboração pela linguagem e aquilo que está perdido diante das diretrizes institucionais.
Tais registros funcionam como uma alavanca, um trampolim, uma mola para a imaginação: impulsionar a experiência, fazer viver algo que ocorrera em outro momento e de outra forma. Trata-se de trabalhos que possuem características diferentes das produções artísticas tradicionais. Incorporam, por exemplo, a participação, a relação, a transformação, a impermanência, o acaso, o cotidiano e a temporalidade, e muitas vezes possuem existência material efêmera e circunstancial. (...) A liberdade do vivenciado em outros momentos pode encontrar uma abertura no presente, um olhar no presente sobre ela: alguém produziu intensidade, isso foi possível, por que não aqui? Por que não agora?[3]  

ARTHUR DO CARMO


[1] Frederico Morais. A crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.30 e 36.
[2] “Na realidade, (...) o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está (previamente) inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos.” FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 31. 
[3] Hélio Fervenza. Registros sobre deslocamentos nos registros da arte. In.: Dispositivos de registro na arte contemporânea. Luiz Cláudio da Costa (org.). Rio de Janeiro: Editota Contra Capa & FAPERJ, 2010, p. 45. Houve mudanças nos tempos verbais da citação. N.A.

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