Ao pensar a arte enquanto sistema cultural, Clifford Geertz argumenta que as coisas denominadas "arte" nas sociedades ocidentais constituem-se em marcos culturais que veiculam e dão visibilidade ao conjunto de valores, crenças e juízos integrantes do imaginário de uma determinada sociedade.
De acordo com este ponto de vista, ao se levar em conta, efetiva e qualitativamente, os diversos aspectos que envolvem o processo de construção da materialidade dos seus objetos e o contexto social em que os mesmos se inserem, identifica-se o poder revelador que a arte possui, cuja importante contribuição está, justamente, nesta possibilidade de que, através de um olhar demorado e cuidadoso a respeito dos seus objetos e aspectos do contexto social, se viabilize formas de apreensão da dinâmica que promove tanto a elaboração como o compartilhamento de percepções e significações nos/dos indivíduos enquanto agentes produtores de cultura.
Uma abordagem sociocultural de uma produção artística tem a potência e a mportância acima identificadas, mas, por outro lado, não dá conta das especificidades que compõem e constroem o universo da arte. Este texto desenvolve-se no esforço de abranger tanto uma dimensão como outra.
Performance é uma expressão e produção artística contemporânea, com origens nas vanguardas artísticas do início do século XX. É uma linguagem artística interdisciplinar, híbrida, que dialoga e transita em várias áreas do universo da arte, como a dança, o teatro, a poesia, o vídeo e as artes visuais. É uma ação, evento, situação, cena, proposição, guiada por uma estrutura assemelhada a um roteiro, algumas vezes sendo realizada com a presença de um público (que pode ser restrito ou não, de acordo com a concepção do(s) artista(s) proponente(s)) e outras vezes sem público algum (também conforme a proposta e intenção de quem a concebeu). Sendo que o acesso a ela por parte do público que não esteve presente no momento em que a mesma aconteceu se dará pelas formas e meios com que foi registrada.
Alguns registros de performances trazem consigo marcantes cargas de subjetividade. Importantes singularidades, na fruição, que ao comporem a percepção e a tradução da experiência do sensível no ato de registrar, fazem com que, em alguns casos, o registro produzido alcance uma substancial autonomia em relação à performance que o motivou. Constituindo-se, então, como uma produção artística outra, derivada da ação performática registrada. Situação que no âmbito das poéticas visuais inspira o debate sobre o que é/foi a performance: a experiência/vivência da sua realização ou o registro do que dela ficou.
A experiência/vivência da performance dialoga com a ideia de tempo vivido qualitativo, apresentada pelo filósofo Henri Bergson, que se refere à experiência do viver, tempo esse que traz para o presente tanto o passado como o futuro. Uma vez que reaviva a memória construída e estabelecida, e suscita a interpretação e a tradução de algo a ser somado ao repertório de cognições já existentes em um(nos) indivíduo(s), o que justifica e valida a subjetividade acentuada e a autonomia do resultado final no registro executado.
Registrar uma performance traz consigo um paradoxo, que é a necessidade de se criar uma memória tangível de uma produção artística que se proclama efêmera, imaterial, algo do instante presente. A questão da efemeridade e imaterialidade das produções e objetos artísticos na contemporaneidade surgiu/emergiu através do debate proposto pela arte conceitual, que trouxe reflexões sobre novos suportes (por exemplo, o corpo, que pela presença ou ausência torna-se suporte para a performance), explorou aspectos da perda da aura dos objetos de arte, persistiu no questionamento acerca do fazer artístico e do próprio conceito de arte.
A necessidade de se registrar uma performance, construir uma historiografia do seu processo e desenvolvimento, produzir documentos e memória, vai de encontro aos questionamentos fundamentais do cenário e pressupostos norteadores que a originou enquanto linguagem artística contemporânea. Mas remete-se à necessidade humana de materializar e preservar vestígios sobre acontecimentos, vivências e experiências do estar/viver no mundo, cujas origens e justificações pertencem à lógica de desenvolvimento e reprodução do conjunto de valores, crenças e regras que constroem o processo sociocultural das formações sociais.
SERAFINA FLORES
SERAFINA FLORES
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