Arte e capitalismo: “Além da Crise” na 6a. VentoSul Bienal de Curitiba

Pensar numa boa relação entre arte e capitalismo seria encarar que estudar arte é um investimento a longo prazo. Assumida essa idéia, o artista terá de injetar valor ao seu negócio. O orçamento deverá ser programado para 10 anos, ao menos, incluso alimentação, aluguel, plano de saúde, vale-transporte, viagens, livros, materiais, etc. Sua atividade frequente será participar de residências artísticas, livros, mostras, bienais e procurar estar visível à todos os meios possíveis de legitimação da sua arte. Para isso utilizará como apoio o fundo pessoal previsto para investimento, já que as leis de incentivo à cultura - valores teoricamente disponíveis para essa produção - podem não contemplar todos os custos de um trabalho de arte.

Essa visão, cheia de problemas orçamentários, continua a ser a mais compartilhada entre os artistas. Atualmente, além do trabalho com sua arte, artistas geralmente necessitam atuar em outros setores da economia, para adquirir fundos de investimento mínimo para seu negócio. Com frequência artistas participam de eventos que não disponibilizam nenhum cachê ou pró-labore, como é o caso da a 6a.VentoSul – Bienal de Curitiba. E mesmo sem pagar nem o serviço e nem os direitos de apresentação de sua obra, eventos como esses podem ser positivos para os artistas?

De fato, exposições como bienais podem sugerir uma legitimação.  Além de que, o auxílio em custos como materiais, comida, transporte e estada já é um valor que pode ser abatido de seu fundo de investimento.  Todavia, mesmo nestes projetos, há negociações que podem funcionar, como:

        Quando não há verba para o pagamento de “profissional artista”, pode-se tentar se enquadrar como “profissional pintor de fachadas” - se, por sorte, esse for o caso do seu trabalho. Ou então, participar de graça, agradecendo a oportunidade de se tornar visível num evento tão importante como uma Bienal. 

        Quando o artista for convidado a participar do mesmo evento, não deve esquecer que o valor inicialmente enviado no orçamento de alguns projetos, será barganhado em até 50% à menos. Diante disso, o artista deve aprovar sem titubear a redução dos custos, tendo em vista que sua negação só atingirá a si próprio, pois correrá o risco de não participar da mostra.

        No mesmo caso, se a organização alegar que não há verbas suficientes para o transporte de uma pintura em um caminhão fechado; a obrigação do artista é concordar que a obra seja transportada em caminhão aberto, mesmo que o evento não se responsabilize pelo seguro.  Caso o artista negue, terá as mesmas conseqüências do exemplo anterior.


É bem provável que fosse realmente necessário o corte das verbas nesta Bienal de Curitiba. Até o momento, apenas 547 mil dos 4 milhões de reais autorizados foram captados1, mesmo assim, é importante observar que ainda não há o valor real dos custos e gastos desta edição, já que no site institucional do evento constam diversos patrocínios e co-patrocínios2, os quais ainda não aparecem na consulta do projeto no MINC3. Da mesma forma, não sabemos ao certo quais foram os custos reduzidos no orçamento por meio de parcerias e apoios. 4

Independentemente desse quadro, as deficiências orçamentárias podem não fazer a mínima diferença para a aceitação da participação de artistas em projetos de visibilidade como este. Afinal, são projetos assim, como uma Bienal, que podem fazer um artista ser reconhecido como “profissional”. Também lhe parece importante pela funcionalidade de veiculação e legitimação da arte que está sendo produzida em tempo real.

Estes eventos, geralmente, apresentam um criterioso e elaborado processo de seleção e curadoria. Enquanto seleção, visam estabelecer como critério de avaliação a profundidade (ou coerência) da pesquisa artística do concorrente.  Enquanto projeto curatorial, soma-se a profundidade à relação do trabalho do artista com a pesquisa do curador. Mesmo quando, em certos casos, o método de seleção para esses formatos se mostre duvidoso com designações como “unicidade, autoria ou materialidade das obras”5; o artista deve continuar investindo seu trabalho nisso, pois é um dos modos pelo qual o trabalho será promovido.

No entanto, não basta ter um trabalho amadurecido e relacionado com o projeto curatorial proposto para conseguir sua exposição dentro da maioria dos projetos que disponibiliza algum recurso financeiro, que não o fundo pessoal do artista.  A isso, há de se conectar ao processo mais um item: a intenção do próprio patrocinador destes eventos. “Hoje as políticas públicas, na área de artes visuais, inclusive as de edições, desde o advento da Lei Rouanet, são conduzidas pelos departamentos de marketing institucional das empresas públicas e privadas. Eles administram os recursos públicos legalmente, segundo seus interesses. Esses marqueteiros culturais contam com muito, mas muito mesmo, mais recursos públicos que o próprio Ministério da Cultura. Tudo o que se faz no âmbito estritamente público é absolutamente ridículo quando se compara com o dinheiro público que fica disponível para as empresas através do uso da renúncia fiscal.”6.

Funciona assim: não basta criar um projeto de exposição com qualidade, este precisa refletir algum retorno.  Dessa maneira, mesmo que o projeto já tenha sido selecionado pela qualidade, o artista ou o produtor deverá procurar um captador de recursos e passar por uma segunda triagem. Neste caso, se o produtor ou artista não tiver pensado nisso, ou os “marqueteiros” não vislumbrarem nenhum retorno no projeto, provavelmente será muito difícil sua captação.

Neste sentido, é notória como a antiga Mostra VentoSul transformou-se em “Bienal de Curitiba”. Com esta autointitulação o evento passou a ser uma entidade de poder que, além dos laços culturais, vincula também determinados laços políticos por promover a cidade-sede. É muito interessante observar que as fotos das obras que enchem os catálogos são tão grandes e bonitas quanto às fotos dos locais onde elas aconteceram - pontos turísticos da cidade. Não há nada de mal nisso, a Bienal é um evento, como outros, que poderia ser administrado pelo Estado, mas sendo um projeto da Lei Rouanet passa a ser gerido por organizações privadas sem fins lucrativos. Ou seja, dinheiro público administrado pela mão de produtores culturais que fazem a mediação entre interesses econômicos e os da arte. E isto também é ótimo para os produtores culturais, que há muito vem se especializando nesse tipo de evento de arte inserido no sistema de produção capitalista.

Que mal há em vincular o investimento no crescimento econômico de uma cidade à um projeto de arte, se isto se dá legalmente? Acoplar o interesse do artista em existir num circuito de visibilidade com os interesses capitalistas de empresas não seria melhor do que deixar esta decisão apenas para o governo? Teixeira Coelho diz que “era exatamente disso que se tratava em 1972 e em 1986, era exatamente isso que se queria evitar! (...) Que o Estado deixe de selecionar, que a sociedade civil, com todas as suas imperfeições, faça suas escolhas – e que o Estado a complemente e suplemente ali onde ela não se manifesta”. O mesmo autor  evidencia que um dos fatores que proporcionou a criação da Lei Rouanet foi justamente o fato das pessoas estarem cansadas da censura imposta pelo governo nos projetos artísticos que causava o exílio de artistas como Gil e Caetano, e censuras como a do filme Laranja Mecânica, por exemplo. 7

É pertinente falar que a nova condição de seleção não modifica totalmente as coisas. Em pleno século XXI temos um exemplo de censura, diferente, mas que foi acometido um dos trabalhos do artista uruguaio, Ricardo Lanzarini (convidado da 6ºVentosul – Bienal de Curitiba) exposto na Galeria Júlio Moreira. A obra de Lanzarini continha desenhos ilustrativos de homens obesos e dotados de um ou mais pênis, interligados uns aos outros através de seus membros. Alguns utilizavam chapéu de padre ou quepe militar. Pela localização da Galeria, em uma passagem intensa da cidade, a Fundação Cultural de Curitiba advertiu que pessoas poderiam ser ofendidas, motivo que levou solicitar à organização do evento que adesivasse a porta da galeria, a qual só poderia ser aberta ao público com a presença de um mediador, com a função de alertar os visitantes sobre o conteúdo da obra.

O fato desagradou o público especializado, e logo, no site da Bienal, apareceu uma foto com diversas pessoas dentro do espaço como uma espécie de estratégia para mostrar que a obra estava aberta ao público8. Mesmo assim, nesta semana e nas semanas passadas tentei por diversas vezes visitar a galeria e, em todas as vezes, além de não haver monitores para abrir o local, era justificado pela administração ao lado que o espaço estava fechado por ordens superiores. Vale destacar que o curador selecionou o espaço, o artista veio do Uruguai para fazer uma intervenção e pela falta de um monitor a obra não pode ser mostrada ao público.

Parte da visibilidade que o artista acredita estar ganhando com estes eventos, vem do envolvimento e da formação de um público. Esta formação deveria acontecer através do projeto educativo o qual é apresentado como um dos principais objetivos da Lei Rouanet, e que provavelmente constou no orçamento de produção da Bienal. Mas, de fato, o projeto planejado não foi completamente executado porque, por declarações da própria responsável por este, a organização da Bienal comunicou que não havia mais verba para a contratação de monitores. Assim, os espaços que abrigam a Bienal contam somente com monitores que já trabalham nestes locais e que não recebem adendo algum para a monitoria na Bienal. Outro problema agravante sobre a questão de visibilidade foi o fato de que a maioria das palestras foram realizadas com a presença somente de alguns dos palestrantes.

Neste caso, parece que a Bienal, que deveria ser responsável pela movimentação do público e pomover a visibilidade do trabalho do artista, não conseguiu colocar este como um dos seus objetivos principais. O que nos faz pensar se o evento não sofre com sérios problemas de organização. Pois, se não há verba o suficiente (o que ainda não está inteiramente esclarecido), porque promover um evento que ostenta ser uma Bienal?  Não seria melhor promover uma exposição mais forte no projeto educativo e que respeite o trabalho do artista como profissional, mesmo que em menores proporções?

Entretanto, mesmo sem receber dinheiro referente à mão de obra para trabalhar nestes eventos, mesmo aceitando que seu projeto pode ter os custos reduzidos pela metade, mesmo havendo a possibilidade de seu trabalho ser censurado por não existir a contratação de um único monitor, mesmo que a visitação possa ocorrer de maneira errada por faltar mediação; os artistas concordam em expor em propostas assim. Sim, é claro, isso porque esse é o projeto em cena, o maior que acontece na cidade, por enquanto. Mesmo que mal organizado, possui seus agenciamentos: reúne curadores, críticos e galeristas de diversos lugares. Se der sorte, um curador do MOMA escolhe seu trabalho e você consegue uma galeria. Neste momento, talvez, seus problemas sejam solucionados.

Por fim, se por um lado a relação da arte com o capitalismo é vista com bons olhos por ser uma maneira de inserir a profissão artista e o produto arte dentro de um sistema que adaptou a todos a uma sociedade “democrática” - mesmo com alguns defeitos em seu modo - por outro, não pode-se deixar de lado que a ação fagocitária do capitalismo para com a arte pode estar atribuindo pesados limites a sua própria experimentação.

Assim, o objetivo deste texto não é atacar os artistas,  dizendo que eles agem erradamente ao participar destes eventos, ou atacar a  própria Lei Rouanet, dizendo que ela não funciona à cultura, mas, sim, de deixar as coisas claras, para que em eventos futuros estas questões sejam repensadas e reorganizadas. É papel dos artistas expressar suas insatisfações. E, se você, artista, acredita que seu trabalho deve promover retorno financeiro ou pelo menos séria visibilidade em um evento como este da Bienal de Curitiba - que é o projeto que temos em mão neste momento - é sua obrigação se interagir e propor melhorias.  Mesmo que não concorde que o dinheiro deve ser investido desta maneira e em projeto como estes, é seu dever também o da discussão de possíveis alternativas. Caso contrário, essas distorções continuarão a existir. Afinal, o dinheiro investido também é seu, e deve ser investido em formatos de seu interesse, e não de empresas ou organizadores.


Acredito, por exemplo, que é ingênuo pensar que o valor atribuído ao produtor seja mais importante que a ajuda de custo a um monitor do projeto educativo ou que o pagamento do direito de apresentação da obra de um artista. Embora o monitor e o artista acabem trabalhando de graça tenho sérias dúvidas que o produtor trabalhe de graça, ou que transfira parte de seus honorários para melhor adequação do projeto. Como por exemplo, colocar ao menos um monitor na Júlio Moreira para que pudéssemos ver a obra do Lanzarini.

Infelizmente, de início, não vejo possibilidade de mudança efetiva, se não esta, de tentar pôr as pequenas cartas que já estão pra lá de visíveis à mesa. E com elas fazer um convite à reflexão, não só para os artistas, mas também para todos que puderem ler e discutir este texto em nosso blog9. Neste sentido, é importante deixar bem claro que não pretendo subestimar os benefícios que esses eventos causam para a arte e para a nossa cidade, mesmo que eu não consiga enxergar bem os inúmeros vídeos e fotografias, dispostos em projetores de tão baixa qualidade. Afinal, isto provavelmente não é uma decisão exercida por conta da ignorância na hora de alugar os projetores, pode ser que o orçamento não tenha sido suficiente para alugar alguns um pouco melhor, né?

Abaixo comentários trocados por email a partir da leitura deste texto:
"Acho que o panorama fica cada vez mais claro para todos, e aí precisamos mesmo agir, como você aponta (e convoca). Um dos nós que eu vejo é que construímos (e a arte construiu muito isso, sobretudo a partir dos anos 90) uma ideia de que "é possível mudar o sistema a partir de seu interior", a partir de pequenas (e quase sempre simbólicas, mormente) ações subversivas, que é preciso contornar o sistema para atingi-lo etc. Ideias que bebem no situacionismo, e que poderiam funcionar se aplicadas com radicalidade, mas o que me parece é que essas estratégias estão sendo transformadas em "poesia", diminuindo sua radicalidade e, por fim, conformando-se muito facilmente ao sistema. Esperneamos muito pouco. 
Acho mesmo que estamos precisando rever essa ideologia aí, e criar formas mais antropoêmicas de se colocar criticamente. É um desafio coletivo, e gigante. Penso que a arte poderia ter mais clareza quanto a isso -- particularmente, acho que há muitos artistas perdidos ideologicamente (politicamente)... 
Bem, acho que um primeiro passo é falar sobre o assunto, escancará-lo. Isso porque, apesar de mais ou menos conversarmos sobre isso, quase ninguém escreve diretamente sobre o assunto, a maior parte dos textos fica nas metáforas... Tô sentindo falta de uma dose de explicitude maior na arte." (Clarissa Diniz)

"Oi lalilana,

reli o texto e continuo achando que está bem escrito e com as ideias
expressas com firmeza e posicionamento.
porém, na mudança de informações referente ao projeto lei rouanet da
bienal, achei que em alguns trechos do seu texto você vitimiza o
artista por participar sem cachê.
se vc pensa assim, ótimo. pois o texto é seu e a opinião idem.
a minha opinião é que o artista não é vítima. ele aceita porque quer, aceitou o jogo e, então, passa a fazer parte do
jogo, entendeu?
eles talvez pensem que é por dentro que se transformam as coisas. mas
não vejo isso. pois não há posicionamento, apenas adesão.
e quem adere, aderido está. é o jogo.
então, esses artistas são artistas que representam a bienal,
inclusive, em toda a sua "monstruosidade"
(refiro-me ao formato, que é, convenhamos, aristocrático...).
e do jeito que está no seu texto parece que não havia saída para eles.
ora, havia sim. havia, inclusive, a saída...
por exemplo: o seu posicionamento diante da parceria lab/bienal é o
que há em termos de potência.
você realmente pensou isso. pensou as diferenças desta parceria. e não
simplesmente "aderiu".
você e os outros participantes do lab pensaram "por dentro" um
contradiscurso. isto é importante.
a pergunta que deixo é: será que esses artistas pensaram como você ao
saberem das regras do jogo? ou apenas aderiram?
é isso, beijo.
rica"
http://blogdocorona.blogspot.com/


1 Disponível em: http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php. em 9 de outubro de 2011. Para fazer a consulta você precisará informar o número do projeto que é o 105661. Há possibilidade da consulta de outros projetos da mesma organização, informando o nome do Proponente como “Instituto Paranaense de Arte”.
2 Disponível em: http://www.bienaldecuritiba.com.br/2011/home/?secao=12. Em 9 de outubro de 2011.
3 Disponível em: http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php. Após acessar o projeto pelo número é só clicar sobre o valor “Apoiado” na extremidade inferior direita da tela.
4 Idem 2.
5 BAHIA, Dora Longo. O Museu do Vazio. In: Revista Recibo , n.10, (jun/2007) Florianópolis, SC.  
6 Revista Número. Limites - n.8, (2006).  Entrevista com Paulo Sergio Duarte.
7 COELHO, Teixeira. A conquista esquecida. In: Revista Observatório Cultural/OIC – n.07, (jan/mar.2009) São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2009.

LAILANA KRINSKI



Um comentário:

Lailana disse...

- A referencia número 8 foi trocada pelos organizadores, e agora só consta com fotos da obra que está no Museu e não a do TUC... Mudaram no dia 28/09.
- Sobre a fala de Denise Bandeira ver entrevista concedida por ela para o jornalista Arthur do Carmo no link: http://www.negodito.com/a-curadoria-educativa-na-bienal-de-curitiba-%E2%80%93-entrevista-com-denise-bandeira/

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