“Do que você está rindo?”
“Eu tinha que ter conhecido essa figura... olha só”
Pego uma fotografia de Cabeça coletiva, de Lygia Clark, e mostro a uma colega de trabalho. Aponto para aquela senhora descendo as escadas levando sua mais nova obra: uma estrutura de madeira para ser usada por uma pessoa, com compartimentos nos quais iam se agregando diversos materiais. Clark, juntamente a alguns jovens, carregava o objeto como quem carrega o caixão de um amigo - todos unidos para sustentar aquele corpo indicial de vida e que tanto os afetara. Flagrada, a artista leva a tal Cabeça em uma das mãos, e na boca vê-se um cigarro. Nada mais revelador de uma existência que não perde tempo em firulas: carrega uma obra, e a leva à rua que é seu destino enquanto sacia um desejo vicioso. Hábitos adquiridos e forjados, para o bem ou para o mal: os dois mostram que a arte não é um bicho de sete cabeças nem o artista alguém descolado do mundo.
Ninguém melhor que a própria para nos dar um adendo: “na relação que se estabelece entre você e o ‘Bicho’ não há passividade, nem sua nem dele”. Em 1960, quando nascem as peças que levam esse nome, por muitos, consideradas precursoras da chamada participação do espectador, pode-se dizer que seu caráter objetual ainda era evidente e instransponível.
A guinada definitiva rumo à desmaterialização do objeto na poética de Clark foi dada com a chegada às proposições. Em 63, ela criou uma proposta radical, simples e didadicamente apresentada pela própria artista: “Faça você mesmo um ’Caminhando’: pegue uma dessas tiras de papel que envolvem um livro, corte-a em sua largura, torça-a e cole-a de maneira que obtenha uma fita de Moebius”. A obra seria dada no corte dessa fita e no ato de fazê-la: “atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante”. Clark advogou a arte como um “trampolim para a liberdade do espectador-autor”. Seria preciso que a obra fosse além da manipulação e da participação, para que o espectador redescobrisse seu próprio gesto em novas significações.
A partir de 66, cria uma série de objetos que pretendiam, ao toque-contato do sujeito, a analogia orgânica e o estímulo sensorial: um exemplo importante no entendimento de uma participação que ultrapassaria a independência do objeto artístico. Rolnik afirma, por exemplo, que com propostas como essa, “o espectador descobre-se como corpo vibrátil, cuja consistência varia de acordo com a constelação das sensações que lhe provocam os pedaços de mundo que o afetam”. Todavia, em 69, Clark reconheceu que havia atuado criando objetos mediadores entre a sensação e os participantes. Com a incorporação do objeto nas manifestações que criaria adiante, esse tendeu a desaparecer para que o homem se tornasse “o objeto de sua própria sensação”.
Desde 68, Clark deixara o país, inaugurando simbolicamente o percurso que seria imposto a outros com o exílio político. Em 72, foi convidada a lecionar na Sorbonne-Paris, de onde surgiu a Cabeça coletiva que por um breve momento me fez rir e querer estar junto da artista. Separados pelo tempo-espaço, e sem acesso ao objeto artístico para me dar alento – já que sua vida foi marcada justamente pela superação desse meio –, o que me resta é seu pensamento mudo.
No entanto, este reverbera como uma obra de arte: “ao mesmo tempo em que ele se dissolve no mundo, em que ele se funde no coletivo, o artista perde sua singularidade, seu poder expressivo. Ele se contenta em propor aos outros de serem eles mesmos e de atingirem o singular estado de arte sem arte”. Será que estamos, espectadores que ainda somos, à altura dessa proposição?
TIAGO VALDIVIESO
CLARK, L. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p. 17
Ibid., p. 25
Ibid.
Ibid., p. 27
ROLNIK, S. Molda-se uma alma contemporânea: o vazio-pleno de Lygia Clark. 1999. p. 20. Disponível em: <HYPERLINK "http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/molda_com_resumo.pdf"http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/molda_com_resumo.pdf>
CLARK, op. cit., p. 35
Ibid., p. 28
Nenhum comentário:
Postar um comentário