Não importa se uma performance foi presenciada ao vivo. Leu-se sobre ela, miraram-se registros dela, ou simplesmente ouviu-se falar dela, ela existe em cada um desses momentos: na cabeça de cada qual, e ela é este território que vai se construindo, sem hierarquias, ela é sua própria trajetória de sentidos. [MELIM, Regina. 2012, p.16]
A performance me interessa na sua dimensão de ruptura e laboratório para múltiplas linguagens. Sabemos que atualmente ela funciona como uma linguagem específica no campo da arte, mas enquanto outras linguagens encontram nela um campo de experimentação e expansão, apontando novas direções poéticas, ela mesma se consolida em um evento de produção e recepção circunscrito pelo corpo presente do performer diante de um público. Dentre os meios de criação na arte, o corpo possui o maior potencial de improvisação e presença diante de um público. Sua condição de paridade com aquele que o vê garante isso. Entretanto, a nominação de performance de acordo com essa capacidade de improvisação e unicidade de um evento deixa escapar, da própria tradição em que se baseia, a aparição de um deslocamento temporal e de sentido das coisas, uma ruptura, deixa escapar a ideia de ato como declínio para o real. A institucionalização do corpo presente do performer na performance impede a expansão do seu conceito e de suas outras potências, possíveis diante de uma sutil mudança de foco: da ação ao deslocamento provocado pela ação. Essa mera mudança do ponto de vista diante de uma performance pode nos dar ferramentas poderosas na leitura, criação e recriação de performances na arte contemporânea.
A performance nas artes visuais se delimita por uma tradição recente em comparação com outras linguagens. A repetição de alguns procedimentos na formação dessa tradição constituem o campo hoje chamado de performance art. Mas quais procedimentos são recorrentes na produção de performance? Que leitura fazemos de um procedimento performático? Quais procedimentos interessam aos artistas dedicados muitas vezes integralmente a esse campo artístico? Percebemos a implicação da performance numa trajetória poética ou ela formaliza uma atuação ainda que submetida a uma leitura incompleta da ideia de performance? Não cabe a ninguém além do artista afirmar qual o procedimento de performance deve ser desenvolvido, pois cabe ao artista se perguntar se o meio de visualidade em que ele se encontra possui a maior potência poética para sua questão.
Os desdobramentos da performance art ainda parecem presos a ideia de uma presença corporal, mais do que a uma noção de ruptura roteirizada. O que afirma a tradição da performance nas artes visuais? O corpo do performer fala mais do que seu jogo de combinações do tempo e do espaço? A dimensão de ação e evento propostos pela performance estão além do reconhecimento de uma categoria de produção artística: o teor da presença e do risco estão à frente da afirmação de uma linguagem. A definição de performance é uma impossibilidade semântica. [STATES, Bert. 1996] Conceito catalizador de outros conceitos, seus procedimentos transgridem a si mesmo. Se a presença corporal do artista, baseada na tradição, delimita o acontecimento de performance art, temos um núcleo essencial para seu reconhecimento? Todas as delimitações dão forma à linguagem sem forma por excelência, e mesmo o jogo do tempo e do espaço de seus processos traz apenas uma de suas características, como numa especificidade de outros meios. De que falamos quando falamos em performance? Trazemos quais pontos da tradição e dos meios de legitimação para a potência poética? De que falamos quando falamos dos elementos que compõem uma performance? Quando o gesto performático transfigura a condição de um objeto?
Na edição de julho da p.Arte – Mostra de Performance Art, organizada por Fernando Ribeiro e Tissa Valverde, na Bicicletaria Cultural em Curitiba/PR – encontramos a artista holandesa Ieke Trinks diante de uma mesa com uma maço fechado de 500 folhas sulfite, um copo de água, um copo de café e um copo de vinho, fitas crepe, tesoura e canetas dos mais variados tipos. Após abrir o pacote de folhas sulfite, uma a uma, até o fim, são retiradas do monte e soltas ao chão (inclusive com o público espontaneamente recolocando à mesa folhas que já haviam sido soltas ao chão), seguido da fala enfática da artista – papier, papier, papier, papier, papier, paper, paper, paper, paper, paper, paper, paper, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papir, papel, papel, papel, papel, papel, papel, papel, papel, papel, papel, papel, paper, paper, paper... Seguido da fala, e do depósito no chão, a artista fazia intervenções nos papéis, em alguns escrevendo TEXT, PAPIER, BICICLETA, desenhando, cortando um coração, derramando a água, o café e o vinho sobre alguns deles, mas sempre repetindo as mesmas palavras, todas circunscritas à ideia de papel. Seguindo um caminho contrário aos procedimentos artísticos, em que objetos são carregados de outros sentidos, as diferentes combinações de elementos pareciam não resultar em nada além da imposição de um sentido único por sua fala. Entretanto, cada aparição da fala era uma aparição única diante do tempo apesar do continuum de sentido da fala. (...) O artista, ao construir semelhanças entre coisas díspares, faz a imagem ser ao mesmo tempo repetição e aparição única, sujeita ao manuseio móvel da estrutura temporal, cujo feito possui potência de uma brincadeira infantil, inscrita no misterioso abismo de uma ordem analfabética. [CHEREM, Rosângela Miranda. 2012]
Não seria esse o procedimento pelo qual surge a condição artística de algo? Considerando que imagem, mais do que fotografia, é forma fora de si e trabalha contra a ideia de identidade ou substância singular. Sem imagens, sem sensíveis, todas as coisas existiriam apenas em si mesmas, toda forma de influência seria impossível, o universo seria uma massa de pedras cuja única relação recíproca seria aquela determinada por uma força exterior – fosse ela a gravidade ou uma ação centrífuga. Se o mundo conspira para algo de unitário, é somente graças às imagens. Os meios – enquanto condição de possibilidade da existência do sensível – são o verdadeiro conectivo do mundo. [COCCIA, Emanuele. 2010, p.38-9]
As concepções mais recentes na abordagem da performance nas artes visuais resgatam a ideia de que nomeações, conceitos e concepções no campo da performatividade são todos acontecimentos, e isso não permite que se constituam desdobramentos reduzidos de importância diante do índice originário: eles passam a integrar e, muitas vezes, a recriar a performance como aparição para um sujeito. Mesmo os performers leais a uma ideia de corpo presente como condição irredutível para a existência integral da obra, sabem da importância das estratégias de difusão do trabalho de arte. Quando o registro e outros desdobramentos passam a ser tão importantes quanto a ação ao vivo, não seria a hora de pensarmos como estamos produzindo e presentificando performances? (...) Pensar nessa produção que acompanha as performances é pensar que estamos diante de algo que não pode ser tratado exclusivamente como uma situação secundária. A fotografia, o texto, as anotações e os depoimentos de performance podem ser, sim, em muitas situações, os documentos primários da ação. [MELIM, Regina. 2012, p.17]
Mas a questão relacionada a isso é: quando um documento deixa de ser secundário para assumir a aparição da performance para alguém? Como o documento se transfigura em obra? A tentativa de resposta se baseia nos próprios procedimentos de performance, na dimensão já trazida aqui de deslocamento, jogo dos sentidos no tempo e no espaço. Temos de considerar que a performance é, acima de tudo, uma linguagem generativa, além da obra no corpo mesmo do artista, “em seu propor que era (é) expor”. Pensar na gênese da performance nas artes visuais é pensar na estrutura das operações que a permitiu existir. Os documentos devem integrar a performance como índices dessa estrutura, e não necessariamente como índices de realidade. Não restritos a uma ordem material das coisas que se apresentaram, mas a uma ordem simbólica de aparição do mundo presentificada por outro. A aparição da performance é dada pelas condições de presença de um outro. Ele é necessário para que ela exista. Mas a comunicabilidade acontece por uma aparição da performance também em outros suportes, pensados, ressalto, como estrutura de uma operação de descontinuidade nos mais variados discursos. Pois, a relação crucial não é entre o documento e a performance, mas entre o documento e a audiência. [AUSLANDER, Philip. 2006]. A performance torna-se um instrumento situacional no discurso, ou um instrumento situacional no real, quando enfatizamos a sua condição primordial de ruptura ou declínio para o real ao invés de priorizar a presença de um corpo humano, seja do artista ou do seu mandado/contratado. Mas, isso, preciso deixar bem claro, não exclui a potência de presença e imprevisibilidade no tempo real proporcionado pelo corpo ao vivo.
A relação da audiência com a documentação da performance se constitui pelos elementos no documento que indicam o que desencadeou ou o que foi deslocado pela performance, quais rupturas ou declínios para o real ela provoca, e eles podem estar presentes tanto na estrutura de um vídeo quanto na estrutura social. Temos assim duas estruturas em embate, uma contínua, a do discurso do mundo em suas múltiplas aparições e a sua queda, o mergulho fugaz no real trazido pela estrutura da performance, em sua operação de descontinuidade. Tendo isso em vista podemos dizer que todo artista é um performer, suas elaborações são elaborações de descontinuidades nos discursos. O trabalho de arte fala por sua forma deslocada, assim como o mundo fala por sua presença/aparição.
O deslocamento potencial da performance passa a existir não só na presença física do performer em outro corpo, social-político-artístico-material, mas nos indícios de sua autoria numa estrutura aonde o deslocamento é provocado. Importa aqui, quando volto a pensar em performance, seu funcionamento como forma possível. Corpo que não se pode ignorar por ser desvio nas trajetórias ordinárias, a performance originariamente descontinua a conduta banal.
As minhas reflexões com relação à performance se apegavam à ideia de um “corpo orientado”, de um corpo que fala do interior do discurso em que se encontra, provocando assim um sentido outro dentro de uma estrutura ordinária, um corpo que era cisão, orientado a provocar essa ruptura contextual, um corpo que apareceria orientado ao deslocamento contextual. Entretanto, quando considero que um documento, ele mesmo, carrega o ordinário e a performance, sou levado a pensar que há uma modulação desejada do discurso performático. Uma imagem-acontecimento que carrega o vôo e a queda, a trajetória ordinária e sua ruptura, irrupção do desvio nela mesma, carregando em si um corpo modulado. As potencialidades de criação situacionais através do que passei a chamar de “corpo modulado” estão ligadas à maior contaminação dos meios na acontecimento das performances. A performance para vídeo ou foto se realiza na estrutura videográfica ou fotográfica, e é por essa estrutura que uma forma deslocada vem até nós e/ou aparece. Conjuntos de discursos que os artistas poderiam se permitir pelas consecutivas e diferentes estruturas de montagem na comunicação com a audiência, não restringindo os trabalhos pela dualidade da documentação e efemeridade do ato, mas fazendo do documento um espaço outro para o discurso performático. Alguns artistas restringem seus meios de produção e acabam por justificar a produção pelos meios escolhidos. Mais do que um criador de sentidos nas materialidades presentificadas, acabam oferecendo meio caminho de sentido, que ao invés de se tornar um campo de multiplicidades se torna um abismo incomunicável.
Os conceitos de performance são conceitos operacionais. Assim, os esboços teóricos se voltam às operações por ela efetuadas, na tentativa de organizar os dados da experiência provocada. Claro é, então, que a performance se constitui como discurso, como linguagem, operando no nível da experiência. A modulação de descontinuidades numa situação, mesmo que haja uma narrativa linear, é instrumento que permite que a performance exista, instrumento visto a partir de sua operação, que a permite acontecer. Tais instrumentos são instrumentos dados pelos contextos de seu acontecimento, surgidos tanto do artista consigo mesmo, quanto daquilo com o que o artista se depara, afinal, a performance só pode ser vista se for interferência, ruído e risco; do contrário, parece-me impossível delinear qualquer operação de extensão ou escuta da performance no campo da arte.
ARTHUR DO CARMO
Bibliografia
MELIM, Regina. “Imagem e performance nas artes visuais”. Artigo. p.13-19
CHEREM, Rosângela Miranda. “Extrapolações sobre a fotografia como procedimento artístico”. Artigo. p.29-41.
AUSLANDER, Philip. “The performativity of performance documentation.” Artigo. In: Performance Art Journal – PAJ 84, 2006, p. 1-10.
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Trad.: Diogo Cervelin. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
STATES, Bert. "Performance as Metaphor". Artigo. Revista Theatre Journal, março 1996, p. 1 a 26.
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