Ação artística: meio sem fim
Poderia, a priori, dizer que este não é um texto sobre performance, ainda que parta de algumas experiências de performance compartilhadas, é antes uma reflexão movida por tais experiências apontando para um outro lugar: o esboço de leitura de um gesto artístico, um "corpo" propositor de dúvidas e percepções.
Viveu-se, durante quatro dias, no espaço tardanza, em Curitiba, o encontro chamado performeios, em que artistas com trajetórias e referências diferentes fizeram suas ações seguidas da mostra de videoperformance e de uma conversa, no encerramento. A curadora Eliana Borges convidou artistas para realizarem suas ações e convidou um curador ou artista para fazer cada seleção das videoperformances, constituindo um movimento de curadoria dentro da curadoria. O performeios contou, ainda, com a parceria da plataforma Descontrole remoto, o que viabilizou a vinda de artistas de Natal, no Rio Grande do Norte, para participar do evento.
Além dos encontros e afetos da convivência durante esses dias, tais experiências deixaram-me pensamentos-imagens-fraturas. O lugar da ação, não o espaço físico, mas seu lugar no mundo como gesto artístico, é o seu acontecimento. Mas a forma de sua existência pode não ser presencial, e isso se verifica quando o vídeo, por exemplo, é o lugar da ação e da linguagem. Neste sentido, o vídeo sonhopicnic, de Adriana Tabalipa, manipula a performance realizada ao vivo, pensando a concepção do trabalho para o espaço do vídeo. Diferentemente, os vídeos de Nadia Granados, artista colombiana que participou da seleção feita pelo curador Santiago Rueda, investem na importância do discurso político de formas de dominação relacionando-o também à pornografia. No vídeo boquete anti-imperialista, ela alia uma fala de uma língua que inventa, portanto uma fala-rumor, incompreensível, a uma legenda extremamente política e irônica trazida para um contexto erótico de um pornô tosco, no qual ela faz um "boquete" em um revólver, vídeo tecnicamente realizado de forma simples e caseira. Ou seja, neste trabalho ela cria uma desorganização entre falas e ações que não se completam, mas ao contrário, provocam um desconforto pela diferença, não pela aproximação e semelhança, conforme defende Jacques Derrida em A escritura e a diferença (2005).
O evento da performance entendido enquanto presentificação - chamarei performance sem entrar na definição ou impossibilidade de definição do termo, já bastante internalizado no meio artístico em geral - não garante um bom desempenho do trabalho. O primeiro incômodo causado nesses dias foi perceber que às vezes parece haver algum automatismo na presença do corpo nu, como se não fosse importante pensá-lo na ação, como se ele falasse mais sinceramente, como se fosse mais "corpo", como se a priori ele travasse uma relação entre performer e espectador mais direta, mais honesta e mais intensa, necessariamente. É o conjunto dos movimentos/ações do corpo do artista com um outro, que seria o "corpo da performance", ou seja, elementos que compõem os sentidos propositivos do trabalho, que indicia um pensamento sensível, um "gesto" de "criação da ação". Penso aqui o gesto artístico apontado por Jean-Luc Nancy, que diz: "Qualquer obra de arte pressupõe qualquer coisa de diverso do significado: um gesto. [...] Um gesto não é nem um movimento nem o rastro de uma forma, mas muito mais é o acompanhamento de uma intenção em relação à qual permanece, no entanto, estranho. [...] É um dinamismo sensível que precede, acompanha ou sucede ao sentido e ao significado, mas é um sentido perceptível; um tipo de sinal orientado à necessidade de criar e revelar um mundo" ("L'arte, oggi". In: Del contemporaneo: Saggi su arte e tempo, 2007, p. 14, trad. da autora).
Para Gilles Deleuze e Félix Guattari (Mil Platôs, v. I, 1997), a concatenação de situações é que cria seja o gesto artístico, seja o desejo ou o gesto esquizofrênico, este último evocado por Ricardo Corona em sua fala/texto, propondo a partir desses autores (e do livro Caosmose, de Guattari, 1992) a loucura como performance (ou deformance). A leitura passa, portanto, pela multiplicidade de elementos que estão em ação e como eles se relacionam e se chocam. São tais concatenações que dão à ação realizada algum sentido perceptível, ainda que de estranhamento, o que torna possível o acesso ao trabalho, ao conjunto de ações-pensamentos heterogêneos que o constituem. As relações se fazem por meio de deslocamentos e não de relações lógicas, pois tanto a partir do conceito de diferença, de Derrida, como de Atlas, de Didi-Huberman, arte não se faz de lógica e analogias, mas de dobra (A dobra: Leibniz e o barroco, 2007) e heterotopia (conceito de Michel Foucault utilizado por Didi-Huberman em Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?, 2010). A dobra deriva, segundo Derrida, do ponto de inflexão, o qual Paul Klee transformou em figuras. O ponto de inflexão é o ponto-dobra, "ponto não dimensional, ponto entre as dimensões", que é inseparável de uma variação infinita ou de uma curvatura infinitamente variável, fazendo de todo intervalo um lugar de uma nova dobra. "É aí que se vai de dobra em dobra" (Derrida, 2007, p. 33).
Algumas experiências ali realizadas criaram dobras, fazendo-me perceber, ao mesmo tempo, sensível, imagética e conceitualmente uma concatenação de ações, que faz com que a potência de uma única e simples fala ou movimento sejam lidos a partir de outras ações, e assim elas podem formar, descontinuamente, gestos artísticos. Neste sentido, arrisco-me a pensar no espaço do gesto artístico a partir das mesas do bilderatlas Mnemosyne, de Aby Warburg, resgatadas para a mostra e o texto curatorial de Didi-Huberman, Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? (2010), mesas essas que constroem releituras intermináveis do mundo e da história da arte por uma arqueologia das imagens (e por que não dos gestos e discursos?), imagens anacrônicas, de forma que convivem, numa mesma mesa, imagens da Antiguidade e imagens contemporâneas, com uma operação de montagem baseada na heterotopia, ou seja, na diferença, na variação, na totalidade da diferença sabiamente caótica, sem chegar em uma síntese. Como diria Jorge Luis Borges de Lewis Carroll, "el rigor secreto de las cosas caoticamente reunidas", ou como diz o próprio Didi-Huberman: "la cartografía extraña de nuestras experiencias inconmensurables" (2010, p. 56).
Assim, as ações que me arrebataram foram as que continham essa (des)forma de montagem no "corpo da performance", entre o corpo e o discurso, e mesmo entre o corpo e os objetos manipulados, transfigurados, relocando o lugar dicotômico entre sujeito e objeto, relocando toda forma de dicotomia e abrindo um Atlas de leituras, de relações e de imagens (e combinações).
O trabalho de Fernando Ribeiro, Eu prometo, propõe um espaço de fala/discurso e outro de ação, espaços descontínuos. Há uma palavra como ação, o verbo "prometer", sugerindo que a palavra é uma ação e que, portanto, seria performance. Mas o trabalho não se esgota no discurso, no nível narrativo, ele propõe uma ação que inicia poeticamente com pétalas de rosa champagne jogadas à água fervente. Depois, o gesto se radicaliza, e os simples objetos também entram em ação: principalmente o elemento água (congelada, em um balde, e fervendo, em outro) em contato com o corpo, mais especificamente com as mãos. A boca cala e depois fala muito mais vagarosa a frase que se repete durante toda a ação: "quando eu prometo, eu prometo uma ação a alguém". Enquanto isso, quase sempre em silêncio, as mãos mergulham no gelo por alguns segundos, depois na água fervente, e assim por vários minutos. Foi esta a imagem-ação-texto que me impactou: o gesto das mãos e a promessa da promessa, ouso dizer, já que a promessa virou palavra-ação relacionada não a um gesto que a significa, mas um gesto que também a desconstrói, já que o gesto leva a um certo absurdo e acaba por não prometer nada.
Um espaço de negação e provocação se abriu em meio a outros gestos bastante afirmativos - como se o corpo presente e o discurso contido na performance precisem da afirmação de estar ali, ou da afirmação do próprio corpo em si mesmo, sem colocá-lo em alguma zona de conflito ou questionamento (o que não necessariamente envolve violência ou mutilação, e estes nem sempre colocam o corpo em zona de instabilidade). Outra imagem também me desconcertou: Sabrina Lopes, na performance Fedor do animal: rodas estreladas, dela e de Mariana Zimmerman, queimando os pelos pubianos com um isqueiro e displicentemente apagando, às vezes com tapas mais ríspidos, e um olhar que mesclava o desconforto com a ternura, um sorriso dúbio, um gesto simples e uma imagem singular, e o melhor dela talvez seja a sua não atuação. Henry Michaux escreve a respeito de seu ato de pintar, que se deve continuar pintando justamente quando se pensa que não sabe pintar (Escritos sobre pintura, 2007), porque é ali onde o gesto pode ser bruto, não demasiado domesticado ou treinado, é ali que está a dobra do domínio técnico, a dobra artística. Às vezes, é preciso desaprender para liberar o gesto artístico da encenação ofuscante, é preciso, como está em Maurice Blanchot, que o pensamento seja des-pensado, desdizer para "dizer além do tudo está dito" (Après coup: précédé par Le ressassement éternel, 1983a, p. 100), ou "retirar palavras para criar palavras" (La espera el olvido, 1962).
A performance Carretel Curare, de Ricardo Corona, tem a fala também afetada pela língua amarrada (abrindo espaço para ainda mais desarticulação, perdendo-se poema), e enquanto a fala evoca palavras e sons em guarani e xetá com uma linguagem anacronicamente contemporânea, simultaneamente há a ação dos carretéis (impulsionadas pelas mãos do poeta) que trançam os fios coloridos de forma que um "quase nó" está sempre eminente, que pode fazer desabar ou travar tudo (inclusive a fala, pois todos os elementos estão fragilmente concatenados: a leitura do texto e, portanto, a fala, os objetos, o movimento dos fios, criando um mecanismo desajustado). Os objetos entram em ação, mas mais do que isso, o que me impressiona é a forma como tudo se organiza, criando a brecha do desarranjo, do desastre.
A ação de Margit Leisner, Sem título, notas de rodapé encontradas por um escafandrista, faz os objetos transitarem, reorganizarem-se e desordenarem-se continuamente, querendo "dar voz aos objetos", como diz a artista, mas fazendo com que esta voz seja uma voz cheia de distúrbios, de ruídos, de imprevisibilidade. Tanto a voz dos objetos como a voz discursiva que se coloca, quando a artista lê um microtexto em letras minúsculas, como as de uma nota de rodapé, com uma lupa presa a um pedaço de madeira, pedaço este que ela cerrou no início da performance. O texto, que é uma montagem de outros textos, começa com "hoje fazemos arte como fazemos guerra". Antes de iniciar a ação que finaliza a performance, ela, ainda lendo o texto na estreita e comprida tira de papel, pede para que todos deixem suas câmeras sobre a mesa, a ação que segue não será filmada nem fotografada, mas apenas lembrada por quem a vivenciou. O trabalho finaliza com uma imagem movente, enquanto ela mantém-se deitada. Os objetos se desfuncionalizam e se integram ao corpo de uma forma inusitada: um pedaço de madeira separa o corpo deitado ao chão de um fogareiro elétrico e da panela, acima, com alguns milhos. Está tudo sobre a barriga, movendo-se com a respiração, correndo o risco de desabar. A pipoca salta da panela criando uma potente imagem que é também fala: a do corpo e a do objeto, e juntos, a da catástrofe, da explosão, talvez não como guerra, mas como gesto artístico.
Curitiba, 30/07/2012.
O performeios aconteceu nos dias 25, 26, 27 e 28 de julho de 2012, organizado pelo e no espaço tardanza (www.espacotardanza.wordpress.com).
Ver também o vídeo Abecedário de Deleuze, letra D de desejo.
Indico a leitura do livro Ahn? (Editora da Casa, 2012), de Ricardo Corona.
Um comentário:
Eu que não nem vi as Performances, adorei o texto. parabéns!
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