Hegel e Baudelaire em debate


Entre o século XVIII e o século XIX, a crítica de arte sofre de fato um grande desvio. Desvio decisivo, e definitivo no devir das épocas posteriores, porque posiciona a arte em questão a si mesma e sua relação com o mundo. É um caminho sem volta. Após Kant e Hegel, a crítica não poderia mais argumentar que um dado sistema de avaliação funcionava para explicar o que vinha a ser a arte em suma. Portanto colocam a arte em questão a si mesma. Após Baudelaire, nem mesmo a tentativa de definição ou defesa de qualquer modelo crítico não determinava o que era arte. Para Baudelaire o que determinava era o quanto a arte conseguia dialogar com o crítico, o quanto de experiência que aquela obra produzia, e o quanto que ela condensava o momento e a vida em que existia. Portanto além de colocar a arte em questão a si mesma, coloca-a também em questão e relação com o mundo.
No entanto, colocar a arte em questão a si mesma e em questão e relação com o mundo é inventar o problema arte. Desde então, essas questões nunca mais deixarão de existir nem na arte e nem na crítica. Mesmo antes de Hegel e Baudelaire, mesmo antes de Diderot e Winckelmann, essas questões já estavam previamente se formando. Mas é a partir da invenção do problema arte que a arte se desenrola. A questão filosófica que surge para todos os autores é a mesma: “ser” e como “ser” arte? Pois, quando Winckelmann e Hegel definiam o modelo grego enquanto modelos artísticos, não definiam também o que era e o que significava arte para eles? Diderot, que duvida deste modelo, e Baudelaire que em suma percebe que o modelo não define exatamente o que vêm a ser arte, não induz ao mesmo questionamento filosófico?
No entanto, é com Baudelaire que o modelo crítico torna-se um não critério, permitindo com que a crítica articulasse ideias diferentes, de sistemas diferentes, ou que criasse um sistema temporário especifico para analise das obras sem defini-lo como exclusivo. Tendo em frente a constante multiplicação de estilos, conceitos e sistemas que surge posteriormente nas vanguardas modernas, dá para se ter uma ideia de como a problemática “arte” se expande. Assim, as observações subjetivas e abertas ao múltiplo de Baudelaire, em contrapartida a visão histórica proposta a abarcar o todo da arte a partir de um modelo, nos tratados artísticos de Hegel e Winckelmann (que o influenciou) tornam-se naturalmente mais convenientes dentro do processo de expansão da arte em seu objetivo de responder a si mesmo e o que ela é e quais suas relações com o mundo. No entanto, nem o ponto de vista de Hegel, nem o ponto de vista de Baudelaire tornam-se menos importante que o outro para esta constatação.
Na crítica de Hegel, apesar de o critério avaliativo se pautar na referência clássica, transparecia também em sua escrita, uma grande ideologia pelo desenvolvimento da cultura grega em geral. Um gosto tal de um espírito romântico, que poderia até se confundir à alguma fala de Baudelaire. Hegel não apreciava o período grego apenas pelo método lógico de sua estética representacional, sua adoração remetia-se também a liberdade criativa e investigativa daquele povo, o intenso ato de reflexão, de pôr-se em questão, de pôr-se viver junto e em questão. Condenar Hegel por criar efetivamente um sistema utópico e idealista é negar a importância que esta criação se consolidou para as reflexões posteriores que consolidarão definitivamente a abertura do sistema crítico. Em sua reflexão estética investigativa sobre a questão “arte”, Hegel destitui diversos métodos analíticos, um a um, sequencialmente, colocando-os em contradição ao seu objeto de análise. Ao fim, Hegel constatará não mais do que a impossibilidade de determinação do significado da arte, embora não abandonasse nunca a ideia de que um dia ambos os sistemas se completariam; o sistema científico que determina a verdade, e o confuso, aquele que ainda não pode ser conhecido completamente, mas que de alguma maneira funcionava análogo ao científico.
Utopias a parte, a constatação de Hegel, por seu método analítico indiscutível, possibilitou a abertura de um grande vértice na discussão filosófica da arte, e a derrubada de uma parede em troca de uma membrana permeável entre a verdade e a especulação de seu significado. Neste ponto podemos pensar nas colocações de Arthur Danto quando fala sobre a validade do constructo histórico de Hegel. Para Danto, Hegel ao instituir a ideia de fim da arte, percebe antecipadamente a urgência da definição da questão filosófica desta. Aponta que Hegel ao destituir todas as possibilidades de definição dentro da arte dentro do preceito clássico destitui também o fim da arte como questão representacional e inicia a reflexão da arte enquanto questão a si mesma. No entanto, a reflexão “arte” não teria continuidade se permanecesse dentro do constructo ideal que Hegel objetivava e encontrava seu fim. Se Hegel, por análise constata a impermanência do método sobre o objeto, tendo em vista a multiplicidade das obras de arte contemporâneas de seu tempo atual, Baudelaire procurava a liberdade a esse método. Procurava desenvolver um novo método de crítica, mais dinâmico, menos preocupado em definir uma ideia de arte, mas muito mais aberto à percepções antes não investigadas pelo sistema idealista de crítica.
O NOVO LUGAR DA CRÍTICA DE ARTE
Baudelaire, numa espécie de sintonia e sintomática às ideias de Hegel abandona o sistema modelo e posiciona outro lugar para a crítica. Mas que lugar é esse? Para abordar essa reflexão propomos pensar este lugar de três pontos de vista. O primeiro refere-se ao lugar físico, onde essa crítica está de fato? Baudelaire assim como diversos dos pensadores românticos irá questionar o lugar destinado a esta reflexão. Seria num livro de epistemologia analítica de difícil acesso, de linguagem complicada e de longa extensão que deveria se colocar a crítica de arte? Ou essa reflexão deveria ser colocada o mais próximo possível das obras e da vida de quem as percebe, num modo de escrita quase que automática, mas não menos filosófica, subjetiva e individual, mas também contida na razão exercida pelo conceito de diálogo que propõe os jogos de linguagem e os poemas do autor? É notável a multiplicação das formas e modos de publicações de textos críticos entre os séculos XVIII e XIX; livros/catálogos de exposições, crônicas de exposição, livros de história da arte como eixo a própria arte em vez do artista, livros de poesias, jornais, revistas... É como se a crítica houvesse se alastrado por necessidade própria de sua questão: a arte.
O segundo ponto a se pensar refere-se ao lugar conceitual que a crítica de arte é conduzida após as reflexões sucessivas de Hegel e de Baudelaire. Se antes a crítica de Winckelmann buscava um denominador comum entre as artes de todos os períodos (o grau de beleza por elas alcançada), Hegel propõe a problematização da validação das obras a partir deste critério. Pois, embora Hegel coloque a beleza como um ideal, e parta dela para elaborar seu constructo, o autor não consegue provar com exatidão qual o método que a define. Baudelaire, que pelo relato de Venturi, lê a obra de Hegel, baseia-se e elabora mais a fundo as dúvidas de Diderot sobre uma série de preceitos estéticos definidos sobre o modelo clássico, tal como a superioridade da escultura a pintura, da linha a cor ou do antigo ao novo. O objetivo de Baudelaire é o mesmo de Hegel, o de tentar definir um denominador comum à ideia de arte. Mas, como fazer isso sem privar toda a criação já produzida, toda a construção crítica e estética desenvolvida sobre essas obras? Baudelaire, em sintonia a toda problemática discutida por Hegel, sugere que a beleza, a ideia de arte, não está posicionada em um período específico, mas dentro do conceito de modernidade. Dentro deste conceito, seria impossível elaborar um critério fixo de crítica, tal como almejava Hegel. Afinal, como desenvolver tal critério, se este critério dependia sempre de uma atualização e que só se definia enquanto estudo de um objeto dentro de sua modernidade? Nesta reflexão, a produção crítica e artística de todos os períodos não poderia ser invalidada.
No entanto era necessária alguma validação respectiva à obra que estava sendo analisada, afinal nem tudo produzido pelo homem em determinado período se denominava arte para Baudelaire. Assim, Baudelaire transfere a reflexão epistemológica analítica do pensamento filosófico de Hegel para uma discussão epistemológica subjetiva. Para Baudelaire, toda ação do artista, sua dedicação, seu posicionamento político e ético, em relação a sua arte e a sociedade, também eram critérios de valorização. O artista em si, o cientista (no sentido do pesquisador), o gênio, ao qual ele chama cuidadosamente de “homem do mundo”, torna-se o eixo central da reflexão de Baudelaire. Não importava mais se este artista seguia este ou aquela técnica ou aquele preceito artístico, o que interessava no âmbito da crítica a partir da modernidade era a invenção, a imaginação, a criação mais original que um artista poderia colocar no mundo. Este marco dá o início ao período moderno das vanguardas artísticas, Baudelaire possibilita a liberdade técnica e criativa dos artistas modernos quando se põe em oposição e detrimento à crítica modeladora dos idealistas.
No entanto, por quais critérios os artistas e críticos modernos defenderão alguns tipos de arte a outras, também será uma atualização das questões impostas por Hegel e Baudelaire sobre a crítica de arte. Novamente a questão da arte sobre si mesma e a partir de si mesma voltará a ser o eixo da discussão. Panofsky, Wintengstain e Clement Greenberg, por exemplo, tentarão novamente investigar um possível sistema de interpretação, validação e definição para a arte assim como Hegel o fez. Mas ao invés de partirem de um sistema idealista colocarão a arte em questão a si mesma através do estudo da linguagem em geral ou em sua linguagem específica. Walter Benjamin, em estudos a Baudelaire, retomará o sentido da modernidade na arte, incluindo novas observações e questões sobre a arte em sua nova época. Os artistas das vanguardas, que embora defendam um grupo específico de arte, a partir do subjetivismo ou da originalidade, definida pelos “ismos” da história, praticarão o tipo de crítica de experimentação de Baudelaire ao investigar o posicionamento e as especificações de suas poéticas também no campo reflexivo da escrita. No entanto, estas são atualizações que precisariam ser discutidas mais profudamente. Cabe-nos ainda, aqui neste longo texto, elucidar a definição de um terceiro ponto: o lugar do autor desta crítica.
Uma constatação, talvez a mais importante de Baudelaire a respeito da ideia da crítica de arte foi a de mudança de lugar da figura do crítico. Enquanto Hegel se definia enquanto filósofo, Baudelaire definia o crítico como um apaixonado, e por dedução, poderíamos dizer que ele próprio era um destes críticos apaixonados. Não podemos dizer que Winckelmann e Hegel não eram apaixonados pela arte da qual escreviam e adoravam, bem como, do ponto de vista de Venturi, não podemos não chama-los de críticos. No entanto, o que queremos ressaltar neste último ponto é o teor criativo que essa palavra sugere à esse sujeito, em oposição ao peso metódico e estrutural que a academia implicava aos filósofos da época de Hegel. Teria Hegel construído a mesma reflexão tão detalhada e borrada acerca de seus preceitos pela arte clássica se este não tivesse levado tanto em consideração o pensamento estruturalista da academia filosófica alemã? Teria escrito tudo isso da mesma maneira se ao invés de ele ler toda a filosofia de Platão ele tivesse tido a orientação de outro filósofo grego? Venturi aponta que Hegel mal falou sobre obras, apenas sobre a ideia de beleza ou a ideia de arte. No entanto, não é nosso objetivo duvidar da paixão de Hegel. Interessa-nos que, para Baudelaire, não há ideia de arte sem levar em consideração a obra de arte, ou melhor, as obras de arte. Para Baudelaire, não há crítica sem a experiência direta de observação e sentimento (e participação, por que não?) para com estas obras. Essa experiência não é coletiva, é individual, e, da mesma maneira que ela é exposta de maneira individual por cada artista, é também exposta de maneira individual por cada crítico. É notória a diferença do vocabulário e do método de escrita de Hegel e Baudelaire, do filósofo apaixonado ou do crítico apaixonado. O filósofo estruturalista apaixonado não podia criar livremente seu método de fazer filosofia. O crítico apaixonado sim, e Baudelaire, poeta, o fazia no modo mais livre possível. Sua crítica se dava enquanto uma conversa - conversa no sentido em que essa palavra ganha na reflexão de Deleuze - onde não importa em si o argumento contra ou a favor do argumento do outro (o que seria uma discussão), mas sim, um diálogo, um diálogo entre o crítico e a obra, o que o olho vê e o que a obra quer lhe dar.

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